Paulo Fernandes Costa, da Senior Engenharia e Serviços Ltda.
Data: 01/11/2016
Edição: EM Novembro 2016 - Ano 45 - No 512
Compartilhe:A primeira norma de proteção de edificações contra descargas atmosféricas, a NFPA 78, foi editada nos EUA em 1904, baseada nos trabalhos e pesquisas de Benjamin Franklin (atualmente, essa norma evoluiu para a série NFPA 780 Standard for the Installation of Lightning Protection Systems, que já está em sua edição referente a 2017).
Do ponto de vista de proteção de edificações contra descargas atmosféricas, portanto, são disponíveis normas há mais de um século. Porém, o mesmo não acontece no campo da proteção de pessoas contra descargas atmosféricas em ambientes abertos de grandes dimensões, onde a instalação de sistemas de proteção contra descargas atmosféricas é reconhecidamente difícil, onerosa, e muitas vezes impossível.
É, portanto, auspiciosa a publicação, em maio de 2016, da norma internacional IEC 62793: Protection against lightning – Thunderstorm warning systems [1], elaborada a partir de pequenas modificações da norma europeia EN 50536 [2], de 2011.
A norma IEC regulamenta a especificação, os testes e orientações de aplicação dos dispositivos de alerta de trovoadas, a serem instalados no próprio local que se deseja proteger. Tais dispositivos têm sofrido intenso desenvolvimento tecnológico [3, 4] e estão disponíveis em vários tipos. Um deles é o de alerta antecipado, que permite avisar pessoas que se encontram em locais abertos do risco próximo de queda de descargas atmosféricas, a tempo suficiente para que elas dirijam-se a abrigos adequados. Neste artigo, trataremos especificamente desta aplicação.
Atingido anualmente por quase 58 milhões de descargas atmosféricas, o Brasil é o país de maior densidade de raios do mundo, seguido por CongoEUA, Austrália e China, nessa ordemEm média, verificam-se aqui 130 mortes e 500 feridos por ano. Cerca de 85% das mortes e dos ferimentos ocorrem em áreas abertas, com pessoas trabalhandopraticando esportes ou em atividades de lazer.
Tendo em vista que a densidade é 6,8 raios por km2/ano no País, e supondo ainda que uma pessoa que trabalhe em campo aberto possa ser afetada por uma descarga que caia a 20 metros dela, e que essa pessoa está exposta em um terço das horas do ano, o risco calculado para ela é de 280 x 10–5, que é 280 vezes maior do que o risco aceitável pela norma NBR 5419:2015 – “Proteção contra descargas atmosféricas”, que é 10–5. Verifica-se, pois, que na maior parte do Brasil, pessoas em campo aberto estão expostas a riscos inaceitáveis no que diz respeito a descargas atmosféricas.
Pessoas em atividades de trabalho Canteiros de obras de construção em geral (edifícios, obras industriais, estádios, subestações de energia e similares); construção e inspeção de linhas aéreas de transmissão e de distribuição de energia, de ferrovias, de sistemas de telecomunicação (notadamente das torres); operação de minas a céu aberto; agropecuária (semeadura, trato e colheita); atividades florestais; entregas e atendimentos com veículos abertos (motos e bicicletas); estacionamentos abertos, industriais ou comerciais; pátios de armazenamento de veículos ou outros equipamentos; e pesca profissional.
Pessoas em atividades de lazer ou eventos públicos Praias e balneários, marítimos ou não; acampamentos; clubes esportivos e condomínios onde se praticam esportes a céu aberto; campos de futebol; iatismo ou pesca esportiva em mares, rios e lagos; campos de golfe; praças, arenas e estádios (jogos, shows, missas, cultos, etc.); comícios em ambientes abertos; cemitérios; passeios e eventos esportivos com motos e bicicletas; piqueniques, rapel, montanhismo, canoagem e atividades similares; zoológicos; procissões religiosas e manifestações de ruas.
As pessoas em ambientes abertos podem ser vitimadas por descargas atmosféricas de forma direta (figura 1-a), por tensão de toque em mastros e em árvores (figuras 1-b) e por tensões de passo (figura 1-c). A figura 2 mostra que uma descarga incidindo diretamente no solo pode tornar uma grande área no seu entorno sujeita ao risco de tensão de passo.
A IEC 62793 estabelece os requisitos para todos os dispositivos de alerta de ocorrências de descargas atmosféricas instalados em determinada área, denominada “área-alvo”. As tecnologias de detecção são diversas: medição da radiação eletromagnética emitida pela descarga, movimento de cargas elétricas, detecção do encontro do líder descendente com o líder ascendente (ou vice-versa) e medição do campo elétrico no local (vide tabela I).
A norma não se aplica aos sistemas globais de detecção que fazem uso de satélites, radares em terra e centros de computação associados, e que geralmente são situados longe do local a ser monitorado, como por exemplo a rede BrasilDAT do Grupo de Eletricidade Atmosférica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Elat/Inpe), no Brasil.
Enfocaremos aqui, como mencionado, apenas a tecnologia, prevista pela norma, que permite a detecção antecipada da queda de descargas na área-alvo. Ela permite emitir alerta a tempo suficiente para que sejam tomadas medidas de proteção preventiva de pessoas, animais, bens e/ou serviços. Para melhor compreensão da tecnologia, a seguir é feita uma explanação sobre a evolução das tempestades com a presença de nuvens eletricamente carregadas.
Tempestades nas quais as nuvens não estão carregadas não são acompanhadas de descargas atmosféricas. As tempestades com nuvens carregadas são geralmente chamadas de “trovoadas”.
O carregamento elétrico das nuvens é ainda o processo menos conhecido das descargas atmosféricas. Embora existam pelo menos três teorias a respeito, é suficiente saber que, pela diferença de temperatura entre a base e o topo da nuvem (que podem estar distantes mais de 10 km entre si), ocorrem correntes de convecção que provocam atrito entre as partículas no interior dessa nuvem, levando a uma separação das cargas elétricas: negativas na base e positivas no topo. Logo, em uma nuvem uniforme, na qual o topo não seja des-locado em relação à base, o campo elétrico provocado no solo é volta do para a terra.
A partir do momento em que umanuvem principia a carregar-se, o campoelétrico no solo abaixo dela começa a seelevar, e temos as fases ou estágiosabaixo descritos, os quais estão ilustra-dos na figura 3:
Estágio 4 – dissipação da tempestade.Os estágios de 1 a 4 são empregadosna classificação dos dispositivos de de-tecção, como será visto a seguir.
A tabela I mostra a classificação dosdispositivos de detecção locais, confor-me a IEC 62793. Como se verifica natabela, os dispositivos são divididos nasclasses principais A, B, C e D, de acor-do com os estágios de eletrificação que detectam na nuvem.
A seguinte avaliação é possível pela observação da tabela:
Existem atualmente apenas duas tecnologias disponíveis para medição dcampo elétrico atmosférico: moinho dcampo e medidor eletrônico de campelétrico. Elas são apresentadas a seguir.
Moinho de campo – É baseado em uma tecnologia antiga de mediçãoUtiliza um equipamento rotativo, especiicamente um motor elétrico de corrente contínua com escovas, mancais, rolamenos, etc., conforme ilustrado na figura 4A desvantagem dessa tecnologia decorre da sua natureza mecânica, requerendo manutenções frequentes para prevenir e corrigir falhas.
Sistema eletrônico de medição de campo elétrico – De tecnologia recenteeste equipamento oferece maior confiabiidade pois é completamente eletrônicosem partes móveis. A figura 5 mostra um exemplo.
O sistema de medição de campo elétrico local, que pode ser formado utilizando mais de um sensor, deve atender no mínimo os seguintes requisitos:
É ainda recomendável que o sistema disponha de módulo eletrônico com saídas a relés de contatos livres, para acionamento de alarmes sonoros e indicação de falha de comunicação.
Os riscos oferecidos aos trabalhadores pelas descargas atmosféricas são considerados como riscos elétricos e, portanto, regidos pela NR-10 Norma Regulamentadora no 10 [6] do Ministério do Trabalho.
Essa norma prescreve, no item 1.0.2.4, subitem b, que para o controle esses riscos deve ser incluída no pronuário das instalações elétricas a “documentação das inspeções e medições do sistema de proteção contra descargas atmosféricas e aterramentos elétricos”.
Já em seu item 10.1.2, a NR-10 estabelece que sua aplicação deve ser feita “observando-se as normas técnicas oficiais estabelecidas pelos órgãos competentes e, na ausência ou omissão destasas normas internacionais cabíveis”.
Por sua vez, a NR-31 [7], que reguamenta a segurança nas atividades de agricultura, pecuária, silvicultura, exploração florestal e aquicultura, define as condições de trabalho e alguns requisitos relacionados com a presença de descargas atmosféricas:
a) O empregador deverá interromper as atividades na ocorrência de condições climáticas que comprometam a segurança do trabalhador (NR.31.31.15.1);
b) Deverá orientar seus empregados quanto aos procedimentos a serem adotados na ocorrência de condições climáticas adversas (NR.31.31.19.1);
c) Deverá promover melhorias nos ambientes e nas condições de trabalho de forma a preservar o nível de segurança e saúde (NR.31.13.3.3).
Outras Normas Regulamentadoras, como a NR-9 (Programa de Prevenção de Riscos Ambientais) e NR-18 (Con dições e Meio Ambiente de Trabalho na Indústria da Construção), também apoiam o controle de riscos ambientais aos trabalhadores.
Verifica-se, pois, que existem bases legais para aplicação imediata da norma internacional IEC 62793 Protection Against Lightning Thunderstorm Warning Systems, recentemente publicada, para garantir a proteção de pessoas contra descargas atmosféricas em ambientes abertos onde a instalação de SPDA é economicamente inviável ou impossível.
Observa-se que, no Brasil, o município de São Paulo possui há 15 anos uma lei que obriga à adoção de detecção antecipada de descargas atmosféricas em ambientes públicos abertos. Trata-se da Lei Municipal no 13 214, de 22 de novembro de 2001, que dispõe sobre a obrigatoriedade de instalação de pararaios ou sistema de detecção nas áreas ali especificadas e dá outras providências. A lei foi regulamentada pelo Decreto 42 479/02, que, em seu artigo 1o, dispõe: “Os locais abertos destinados a grande concentração de pessoas, tais como parques, praças públicas, pátios de estacionamento, clubes de campo, áreas para práticas esportivas, cemitérios e similares, deverão ser dotados de sistema de proteção contra descargas elétricas atmosféricas e seus reflexos ou de sistema de detecção de proximidade de descargas elétricas atmosféricas, capaz de alertar a população da iminência da ocorrência de raios, em tempo suficiente para a evacuação da área com segurança.”
Atualmente, a previsão antecipada da queda de descargas atmosféricas em locais abertos já é possível a custos suportáveis, utilizando-se equipamentos de detecção instalados no próprio localHá uma norma internacional, a IEC 62793, respaldada pela NR-10, que regulamenta tais equipamentos, e já existem sistemas desenvolvidos que atendem essa norma. Aliás, esses produtojá existiam antes da publicação da norma, pois foram desenvolvidos segundo a norma europeia EN 50536 [2], de 2011, que foi a base para a IEC 62793.
Daqui em diante, preveem-se no Brasil grandes mudanças nas questões jurídicas relacionadas com mortes e ferimentos ocasionados por descargas atmosféricas em ambientes abertos, a exemplo de uma condenação ocorrida em 2013, na qual uma empresa de segurança e uma construtora foram solidariamente condenadas a indenizar a viúva de um vigia morto por um raio em um canteiro de obras [8]. Pelo visto, foi-se o tempo em que juízes chegavam a tratar a questão como ocorrências imprevisíveis da natureza.