Segurança contra choques – fundamentos eletrotécnicos e médico-biológicos


Nas edições de outubrodezembro de 2015, EM publicou uma série de artigos abordando a segurança contra choques, respectivamente com corrente alternada, corrente contínua e descargas atmosféricas. Os autores apresentam aqui um resumo desse trabalho, com exemplos sobre as questões que permanecem abertas. E incentivam a cooperação interdisciplinar para melhor compreensão da matéria sob os seus diversos ângulos.


Jürgen Kupfer, professorUniversidadeemérito, Berlim, e Michael Rock, da Técnica de Ilmenau (Alemanha)

Data: 23/06/2017

Edição: EM Maio 2017 - Ano - 45 No 518

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A segurança contra acidentes impõe limites às pessoas e animais que devem ser admitidos no projeto, execução e operação de instalações de eletrotécnicas. Os limiares estabelecidos pela natureza ao longo da evolução humana não podem ser ultrapassados. Portanto, os limiares elétricos dos tecidos humanos constituem um importante ponto de partida para todas as ideias e medidas, segundo as quais a segurança elétrica possa ser garantida (fisiologia versus tecnologia, ver exemplos na tabela I).

Reconhecer e dominar os riscos

Com o objetivo de evitar ou reduzir riscos de morte em acidentes elétricos, medidas de segurança adequadas são em geral compulsórias nas normas. Certamente as mais antigas são a isolação e a distância a ser mantida de partes vivas. Contudo, as análises de risco devem também considerar o tipo de defeito: falhas de isolação, inobservância das distâncias, bem como o contato com condutores sob potenciais diferentes. A partir dessas constatações foram definidos, por exemplo, valores máximos admissíveis para tensões de toque e de passo, complementadas por tempos predeterminados dentro dos quais a falta deve ser desligada. Resistências de contato e impedâncias do circuito têm um papel importante no dimensionamento desses valores. Para avaliação do risco pode-se recorrer a parâmetros fisiológicos comprováveis, como a resistência interna do corpo, a impedância da pele e as influências [5-7] que as aumentam ou diminuem, por exemplo, a umidade e a área de contato.

Um exemplo de acidente típico de outros tempos serve para esclarecer essas correlações [8]. O plugue de um aquecedor de imersão portátil, originalmente provido de contato para o condutor de proteção, foi indevidamente substituído por um plugue bipolar sem o terceiro pino. Conforme o uso, a fase ocasionalmente estava ligada à carcaça metálica do aquecedor. Uma senhora, em pé sobre um piso bom isolante, testava rapidamente (milissegundos) a temperatura da água com o dedo indicador intacto e anteriormente seco. O leve formigamento percebido lhe parecia algo divertido (caso 1). Até que um dia, as condições de resistência se alteraram: ao completar a água, a panela metálica e a torneira metálica foram empunhadas com ambas as mãos, provavelmente molhadas (caso 2). Em consequência, ela não conseguiu mais largar esses objetos. Os vários segundos ou até minutos de duração do fluxo de corrente pelo tórax levaram à morte dessa senhora.

Após medições de resistência (condições da rede) e um cálculo estimativo pela lei de Ohm, assumindo uma resistência interna do corpo de 1300 W e sem considerar o fator de corrente cardíaca aproximado de 0,4, os riscos nas duas situações descritas resultam, respectivamente, nas seguintes correntes de choque e efeitos fisiológicos:

Fig. 1 – Corrente de largar para corrente alternada senoidal em função da frequência. (Curvas para probabilidades de 0,5%, 50% e 99,5%)

Caso 1

Onde R1 é a resistência do corpo com a pele seca, e R2 a resistência do piso.

O resultado é uma sensação de formigamento com condições de largar.

Caso 2

Sendo R3 a resistência do corpo com a pele molhada.

O resultado é uma inclinação para frente, com tetanização dos músculos de ambas as mãos e braços durante alguns minutos, sem condições de largar. Provável parada cardíaca fatal.

Este acidente põe em evidência duas constatações importantes:

[N. da R.: Quanto à obrigatoriedade de dispositivos DR, ver ABNT NBR 5410:2004, seção 5.1.3.2.2 e capítulo 9 da mesma norma.]

Outras influências a considerar

Conforme cada caso, é preciso distinguir, para efeito de proteção, entre as diversas formas de tensão. A frequência tem aqui um papel relevante. A evolução nos ensina: o corpo humano diferencia sua resposta ao estímulo! (A respeito da dependência da frequência, ver figura 1 e referência [2]). A eletroterapia fornece um exemplo ilustrativo: em aplicações domésticas, é conhecida a terapia TENS (Transcutaneous Electrical Nerve Stimulation) para tratamento de dores e estimulação muscular [10,11]. A figura 2 mostra a aplicação de diversas formas de corrente alternada senoidal retificada (correntes diadinâmicas), nas quais as frequências de 50 Hz e 100 Hz são moduladas, e às quais pode ser adicionada uma corrente contínua subliminar de 1-2 mA. A terapia de alta frequência com correntes acima de 300 kHz (que já não são eficazes como estímulo) é utilizada para produzir calor em determinadas regiões do corpo, por exemplo, na diatermia.

Fig. 2 – Correntes diadinâmicas com diversos efeitos estimulantes

Fig. 3 – Corrente de largar para corrente contínua retificada, com componente alternada superposta. As curvas significam linhas de idêntica periculosidade: 1 – 50% para homens; 2 – 0,5% para homens; 3 – 0,5% para mulheres; 4 – crianças (estimado)

Para os profissionais que atuam na área de segurança elétrica isto significa que, no que tange à tensão de serviço, deve ser feita distinção entre: ·

Estes diversos graus de risco para pessoas e animais foram derivados de pesquisas específicas. À luz das diferenças entre tensões alternadas e contínuas, deve ser mais uma vez esclarecido: Tensões contínuas puras se distinguem de tensões contínuas com ondulações nos seus efeitos sobre o corpo (ver referência [3]). Nervos e músculos e, portanto, também o coração, reagem de modo muito diversificado ao estímulo externo em caso de acidente. Por meio de ensaios (inofensivos) com estudantes, Dalziel [12] determinou a corrente de largar para corrente contínua em função da ondulação, com superposição de 60 Hz. Os resultados estão representados na figura 3 [13], e se baseiam nas indicações de Petrie [14] sobre a distribuição percentual do limiar de percepção (figura 4). A partir disso, em 1987, Kupfer colocou em discussão um estudo preliminar extrapolado sobre o suposto limiar da fibrilação com corrente contínua ondulada e tempos de choque > 500 μs, levando em conta o relatório técnico-médico da Associação de Mecânica Fina e Eletrotécnica [15].

No contexto da obtenção dos valores limite adequados na prática, deve ser mencionado o papel dos experimentos com animais. No início dos anos 1970, a pesquisa básica e a técnica de segurança foram estimuladas por conclusões derivadas de ensaios com animais de grande porte. Cabe citar três exemplos significativos sob o aspecto patofisiológico:

Os resultados dessas pesquisas com suínos — cuja realização não é mais permitida — são adequados para derivar conclusões para seres humanos, porque a massa do corpo e do coração, e as características fisiológicas, são bastante convergentes.

Incertezas na análise de riscos

Para o profissional de eletricidade pode ser às vezes difícil contemplar a diversidade das pessoas e animais dentro de um conceito de segurança. O raciocínio deve levar em conta os diversos efeitos de uma mesma corrente elétrica sobre o organismo como um todo, por exemplo, para crianças, adultos, pessoas saudáveis ou doentes, etc. Com a proibição, por razões éticas, de pesquisas que impliquem riscos para a saúde ou para a vida, tanto de humanos como de animais, os grêmios de normalização procuram, por analogia, aplicar conceitos de segurança suficientemente testados e comprovados na prática a outras formas de tensão.

Fig. 4 – Limiar da percepção: distribuição percentual com voluntários, com diversas formas de tensão. As curvas significam: 1 – CA 50/60 Hz; 2 – corrente contínua pura; 3 – CC pulsante (retificador de meia onda); 4 – CC pulsante (retificador de onda completa)

Um exemplo de dedução de risco para CA 50/60 Hz com base em corrente contínua pura e descargas de capacitores está ilustrado na figura 5. Orientações desse tipo são extremamente importantes e em geral úteis na prática. Todavia, é necessário alertar também para as inseguranças a elas associadas, como demonstra o exemplo seguinte.

O grupo de trabalho de tensões de passo e de toque, no âmbito da comissão de proteção contra descargas atmosféricas da VDE, analisou publicações científicas a respeito dos efeitos das correntes impulsivas (por exemplo, de capacitores e raios) sobre o limiar de fibrilação do coração [20]. Como indica a tabela II, experiências com animais e a interpretação dos respectivos resultados, muitas vezes sem confirmação estatística, conduzem a valores limite de tensão claramente diversos para o conceito de proteção procurado. Nesses casos, portanto, recomenda-se cautela com o “valor limite admissível”!





Questões não resolvidas

Consequentemente, permanecem aber tas questões sobre as correlações entre a natureza do efeito, o mecanismo de atuação e o diagnóstico dos danos à saúde causados pela corrente elétrica, inclusive dos raios. Diferenças significativas entre os acidentes elétricos e aqueles com raios foram tratadas na referência [4]. Especificamente para o acidente elétrico, embora em parte aplicável também a ambos, as inseguranças remanescentes são analisadas a seguir sob os aspectos técnicos. Numa rodada de discussões em 2014, vieram à tona os problemas pendentes de solução do ponto de vista médico e patofisiológico [21]. De um lado, foi ressaltada a necessidade de diferenciar os parâmetros elétricos de risco de acidentes e, de outro, de uniformizá-los para uma avaliação equânime:

Fig. 5 – Parâmetros de risco derivados de pesquisas com animais, para corrente contínua pura e descarga de capacitores, considerando experiências práticas: * Valor Conversão máximo para CA x CA: √2 valor eficaz de CA = * Conversão para CC pura: amplitude de CC = Valor eficaz de CA valor * Conversão de pico para = valor descarga eficaz de de CA capacitor: x √6, ou amplitude de CC x √6; duração 3 x a constante de tempo (de cauda)

Cabe advertir que não se deve simplesmente transpor modelos de computação e circuitos equivalentes de baixa frequência (por exemplo, CA 50/60 Hz) para outras formas de tensão, principalmente as impulsivas. Em vez disso, recomenda-se a utilização de modelos derivados da fisiologia sensorial, para avançar na avaliação e interpretação dos efeitos da energia elétrica sobre o organismo.

Uma temática especial refere-se aos dados probabilísticos. Eles devem ser contemplados nas normas, por exemplo, na impedância do corpo, como valor percentual. Contudo, existem também divergências fundamentadas. Por isso, em caso de acidente com raio foi recomendado, até segunda ordem, adotar o worst-case [21]. Na sequência, dois exemplos nos quais foram discutidos fatores adicionais de segurança sob o ponto de vista fisiológico e ergonômico, depois recusados devido às incertezas existentes:

Conclusão

Na referida rodada de discussões foi ainda enfatizada a necessidade de dedicar maior atenção à investigação de acidentes, inclusive retroativamente. Um formulário para coleta de dados de acidentes com raios encontrase disponível [22].

Finalmente, foi incentivado o fortalecimento de uma estreita cooperação entre as disciplinas envolvidas, a fim de reduzir o déficit mútuo de compreensão dos fundamentos técnicos e médico-biológicos, no contexto de ocorrências de danos à saúde humana.

Referências

  1. Kupfer, J.; Rückerl, Ch.: Elektrosicherheit – wichtige Grundlagen, Teil 1: Wirkungen des elektrischen Stroms, Elektropraktiker, Berlin 68 (2014) 4, S. 278 – 280.
  2. Kupfer, J.; Rückerl, C. – Riscos de choque elétrico – Parte 1: Corrente alternada, Eletricidade Moderna, 10/2015, p. 36-41.
  3. Rückerl, C., Kupfer, J. – Riscos de choque elétrico – Parte 2: Corrente contínua, Eletricidade Moderna, 11/2015, p. 36-41.
  4. Kupfer, J.; Rock, M. – Riscos de choque elétrico – Parte 3: Corrente alternada, Eletricidade Moderna, 12/2015, p. 46-53.
  5. DIN IEC/TS 60479-1 (VDE V 0140-479-1): 2007-05: Wirkungen des elektrischen Stromes auf Menschen und Nutztiere – Teil 1: Allgemeine Aspekte.
  6. DIN V VDE V 0140-479-3 (IEC 60479-3):2001-04: Wirkungen des elektrischen Stromes auf Menschen und Nutztiere – Teil 3: Wirkungen von Strömen durch den Körper von Nutztieren.
  7. EC/TR 60479-4:2011-04: Effects of current on human beings and livestock – Part 4: Effects of lightning strokes, Technical Report, Edition 2.0.
  8. Kupfer, J.; Funke, K.; Erkens, R.: Elektrischer Strom als Unfallursache – Verhütung, Wirkungen, Sofortmaßnahmen, Behandlung, Begutachtung, Verlag Tribüne, Berlin, 1987.
  9. DIN VDE 0100-410 (VDE 0100-410):2007-06 Errichten von Niederspannungsanlagen, Teil 4-41: Schutzmaßnahmen – Schutz gegen elektrischen Schlag; Abschnitt 411.3.3: Zusätzlicher Schutz für Endstromkreise für den Außenbereich und Steckdosen.
  10. Kramme, R. (Hrsg.): Medizintechnik, Verfahren – Systeme – Informationsverarbeitung. 4. Auflage. Springer, Berlin, Heidelberg, 2011.
  11. Wenk, W.: Elektrotherapie, 2. Auflage, Springer, Berlin, Heidelberg, 2011.
  12. Dalziel, C.F.: Effects of Electric Shock on Man, IRE Transactions on Medical Electronics, Vol. PGME-5, July 1956, pp. 44 – 62.
  13. Frucht, A.-H.; Dalziel, C.F.: Elektrischer Strom als Unfallursache, Handbuch der gesamten Arbeitsmedizin, IV. Band, 1. Teil, München, Wien, Verlag Urban & Schwarzenberg, Berlin, 1963.
  14. Petrie, L.O.: Empfindungsund Festhalteschwelle für Gleich-, Wechselund pulsierende Ströme. Elektrie, Nr. 9, Berlin, 1984, S. 459 – 460.
  15. Reinhold, K.; Buntenkötter, S.; Schaefer, S.; Kieback, D.: Die Gefährdung durch schwingungspaketartig gesteuerte elektrische Ströme: Gefährdungsgrenzen am Tier: Schlussfolgerungen für die Unfallverhütung. Medizinisch-Technischer Bericht 1976. Hrsg.: Inst. zur Erforschung elektrischer Unfälle bei der Berufsgenossenschaft der Feinmechanik und Elektrotechnik. Köln, 1976.
  16. Reinhard, H.-J.; Mickwitz, G.: Untersuchungen an Mensch und Tier zur Verminderung der Unfallgefahr durch Verwendung von nichtsinusförmigem Wechselstrom. Teil I und II. Elektro-Med., med. Elektronik, Berlin, 14 (1969) 2, S. 71– 80 und 14 (1969) 3, S. 109 – 111.
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  18. Kupfer, J.: Experimentelle Untersuchungen zur Wirkung kurzer (20 ms bis 1500 ms) 50-Hz-Wechselströme auf Großtiere (Schweine) mit dem Ziel der Ableitung von Grenzwerten für Körperströme für Mensch und Nutztier, Habilitationsschrift, Technische Universität Dresden, 1981.
  19. Kupfer, J.; Bastek, R.; Eggert, S.: Grenzwerte zur Vermeidung von Unfällen durch elektrischen Strom mit tödlichem Ausgang, Zeitschrift für die gesamte Hygiene und ihre Grenzgebiete, 27. Jahrgang, Heft 1, Berlin, 1981, S. 9 – 12.
  20. Rock, M.; Zischank, W.; Kupfer, J.: Grenzwerte für Schrittund Berührungsspannungen an Blitzschutz-Ableitungseinrichtungen und -Erdungsanlagen, 11. VDE/ABB-Blitzschutztagung, Neu-Ulm, 22. – 23. Oktober 2015.
  21. Kupfer, J.; Rock, M.; Raphael, Th.: VDE, Ausschuss für Blitzschutz und Blitzforschung (ABB): Blitzeinwirkungen auf Menschen und Tiere, Ergebnisse des Arbeitskreises Blitzunfälle sowie der Diskussionsveranstaltung „ Blitzentladung auf Mensch und Tier“ am 27.11.2014; frei verfügbare Informationen: www.vde.com/de/ausschuesse/blitzschutz/blitzunfaelle/seiten/default.aspx.
  22. Kupfer, J.; Rock, M.; Heuhsen, W.: Datenerhebung nach Blitzereignissen mit Personenbeteiligung, 11. VDE/ABBBlitzschutztagung, Neu-Ulm, 22–23 Oktober 2015; Fragebogen Blitzunfall: www.vde.com/de/ausschuesse/ blitzschutz/blitzunfaelle/seiten/fragebogen.aspx.
  23. Kupfer, J.; Müller, R.; Bödeker, K.: Arbeitsschutzgerechtes Verhalten an elektrotechnischen Anlagen in der DDR. In: 7. Internationales Kolloquium über die Verhütung von Arbeitsunfällen und Berufskrankheiten durch Elektrizität. Köln, 4–6 Oktober 1983. Schlussbericht. Köln, 1983, S. 283 – 300.
  24. Verband der Elektrotechnik Elektronik Informationstechnik e.V. (VDE), Ausschuss für Blitzschutz und Blitzforschung (ABB): ABBMerkblätter: http://www.blitzschutz-blitzforschung.de.