Jucele Reis, Redação de EM
Data: 22/09/2017
Edição: EM Agosto 2017 - Ano - 45 No 520
Compartilhe:O setor elétrico brasileiro passa por um momento de profundas tranformações. A crescente inserção de fontes de energia intermitentes que impactam a operação do sistema, novos paradigmas de atuação das concessionárias de distribuição de energia e a necessidade de uma regulação mais abrangente são apenas alguns dos desafios impostos atualmente aos agentes. O futuro da matriz de energia elétrica no Brasil foi tema de destaque em muitas palestras realizadas sob o tema “GTDC Geração, Transmissão, Distribuição e Comercialização”, durante o Fórum Abinee Tec, promovido em São Paulo, SP, de 25 a 28 de julho, paralelamente à 29a FIEE Feira Internacional da Indústria Elétrica, Eletrônica, Energia e Automação.
Em sua apresentação, Mário Santos, presidente do conselho de administração da Enel Brasil, chamou a atenção para a dificuldade de planejamento da demanda de energia em um cenário com tantas variáveis e incertezas, tanto em nível nacional quanto mundial. Segundo ele, basear a previsão da demanda principalmente no crescimento do PIB há tempos já não é mais eficaz. “É preciso observar que PIB e mercado de energia elétrica seguem trajetórias diferentes”. Experiências internacionais apontam que é preciso considerar nas perspectivas o impacto da redução do consumo proporcionada por ações de eficiência energética e também pelas novas tecnologias que utilizam a eletricidade de modo mais eficiente. Santos apontou erros cometidos pelos planejadores australiano e italiano justamente por não considerar tais aspectos na previsão de demanda. “Atualmente há máquinas paradas e usinas sendo desativadas na Itália, em função da sobreoferta de energia, uma vez que a queda do mercado não foi antevista pelo planejador, e houve uma desnecessária expansão do sistema”, disse. Segundo ele, o potencial de ampliação da eficiência energética ainda é muito elevado, em torno de 70%. “O uso de sistemas mais eficientes e as políticas de economia de energia conduzirão a resultados muito positivos em termos de redução de consumo e melhoria de uso”. Segundo o estudo “Global Trends in Energy Efficiency”, da IEA Agência Internacional de Energia, o consumo final total dos países-membros da IEA, que em 2014 atingiu cerca de 145 EJ, poderia ter ultrapassado 160 EJ, se medidas de eficiência energética não tivessem sido adotadas.
Atenta às mudanças em curso, a EPE Empresa de Pesquisa Energética utilizou pela primeira vez na elaboração do Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE) 2017–2026, cuja consulta pública foi encerrada em 6 de agosto, um modelo matemático de decisão de investimento como apoio à construção do cenário oferta vs. demanda de energia elétrica, que leva em conta as incertezas nas prospecções, trazendo uma abordagem baseada em uma trajetória de referência e em um conjunto de análises de sensibilidade. “A EPE está trabalhando um viés mais realista, mais em linha com o mercado. Os modelos não têm correlação unicamente direta com o PIB. Não projetamos por elasticidade. São considerados situação econômica, PIB, demografia, renda e outros dados que são inseridos em modelos específicos, os quais trabalham a consistência dessas variáveis”, disse Jeferson Borghetti Soares, superintendente da EPE, em sua palestra no Abinee Tec.
A partir dessa nova orientação, o PDE considera para as projeções dois cenários: um de referência, com retomada do crescimento no médio prazo, e outro alternativo, com recuperação mais rápida da economia. Para Soares, o cenário de referência é o mais provável, pois “ainda não existem sinais nítidos que apontem uma recuperação”. De acordo com ele, no cenário de retomada de médio prazo, há fatores positivos, como perspectiva de aumento de comércio internacional puxado por segmentos que são competitivos no Brasil, como de celulose e sucroalcooleiro. “Já na indústria, o nível de ociosidade é muito grande”.
Com o consumo final de energia elétrica na indústria em queda — o que, por um lado, indica ganhos de eficiência, mas, por outro, denota a desindustrialização —, a expansão do consumo de energia no Brasil deverá ser impulsionada principalmente pelo crescimento da população previsto para os próximos anos, conforme relatou em sua apresentação Ubiratan Francisco Castellano, assessor da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético do MME Ministério de Minas e Energia. “No segmento residencial, ao contrário de vários outros países, o consumo de energia tende a evoluir, pois a população brasileira ainda está crescendo e o País está ficando cada vez mais urbano. Além disso, estamos na curva de crescimento do uso de equipamentos de conforto residencial”.
Globalmente, as previsões indicam que a demanda energética mundial deverá ser alavancada pelo aumento da venda de veículos elétricos. “Países na Europa, por exemplo, que vêm numa constância e estabilidade energética, poderão ter uma ascensão e um crescimento devido ao aumento expressivo dos carros elétricos”, destacou Mario Santos. A perspectiva de um estudo da Bloomberg New Energy Finance, citado por Santos, é de que a frota dos veículos elétricos, que atualmente é de pouco mais de 1 milhão, atinja 40 milhões até 2040. Além da queda do preço desses veículos, que de acordo com a pesquisa a partir de 2025 será inferior ao dos carros convencionais movidos a combustíveis fósseis, o mercado tem sido impulsionado pela redução progressiva dos preços das baterias de lítio-íon. No Brasil, a EPE prevê que a participação dos veículos elétricos será de 1% nos próximos dez anos. Para Soares, superintendente da EPE, a expansão das vendas de veículos elétricos no Brasil ainda depende da queda de custos, pois não há, por enquanto, expectativa de subsídios nesse segmento, tal como ocorre nos EUA e na Noruega. Já Castellano, do MME, acredita que esse mercado vai evoluir no Brasil a partir de 2023, com a redução de custos internacionais. “O crescimento de energia elétrica em transportes é ainda pequeno, mas é um segmento que tem muito potencial, principalmente se forem feitas políticas públicas para impulsionar a área”.
De acordo com Carlos Eduardo Fontoura, diretor executivo da EDP, no Brasil ainda há alguns impedimentos para o desenvolvimento dos carros elétricos: de um lado, as montadoras aguardam investimentos em pontos de recarga por parte das distribuidoras para iniciar a comercialização em massa, e, de outro, as distribuidoras esperam demanda para investir nesse mercado. Atualmente, a EDP tem feito parcerias com empresas detentoras de frotas de veículos elétricos para alavancar esse mercado. Até o final do ano, a companhia pretende implantar pelo menos 12 novos pontos de recarga e em 2018 estão previstas “algumas dezenas”. Para abastecer os pontos de recarga, a distribuidora de energia tem investido em geração solar fotovoltaica.
Com o crescimento da participação de novas fontes renováveis na matriz energética brasileira — sobretudo eólica, que já conta com mais de 10 mil MW instalados (cerca de 7% da capacidade instalada nacional) e deve atingir 16 mil MW em 2021, com fator de capacidade de 75% —, a operação do sistema elétrico está cada vez mais complexa. Em sua apresentação realizada no Fórum Abinee Tec, Roberto Nogueira Fontoura, gerente executivo do ONS Operador Nacional do Sistema Elétrico, destacou que diversos recursos estão sendo estudados para acomodá-las na operação do sistema elétrico. “Há planejamento de sistemas de armazenamento, térmicas de partida rápida e usinas reversíveis que vão fornecer elementos de trabalho para o operador”.
Outro instrumento a ser utilizado para mitigar a intermitência dessas usinas que estão entrando no sistema é a resposta da demanda — recurso que já é utilizado em alguns países, como EUA. Segundo Fontoura, está em andamento um projeto de consulta pública sobre o tema com o objetivo de estruturar uma regulação. “A resposta da demanda vai favorecer a penetração e a exploração mais assertiva dessas usinas, pois não se pode limitar sua expansão, mas sim oferecer condições para que entrem com mais vigor”.
A prevista mudança no padrão de consumo, ou seja, a possibilidade de o consumidor escolher a melhor hora de utilizar energia elétrica, também constitui um desafio para o ONS, que terá de compreender esse comportamento. “A questão de visibilidade e oscilação da carga é fundamental. Estamos caminhando para um momento em que a carga, principalmente na operação, não poderá ser aceita de maneira passiva. Serão necessários instrumentos que permitam moldá-la para torná-la operável. Teremos de ser mais proativos e construirmos a carga que precisamos por meio de armazenamento, usinas reversíveis e resposta à demanda”.
A entidade também tem se preparado para adequar a energia solar fotovoltaica à operação no sistema. Embora a fonte ainda seja incipiente no Brasil, o PDE prevê capacidade instalada de 10 mil MW em 2026, levando em conta apenas a geração centralizada. No entanto, a maior preocupação do órgão é com a geração FV distribuída, cuja operação é considerada mais complexa, uma vez que o fluxo de energia é bidirecional. “Há muitas dúvidas ainda em torno desse assunto. Estamos em contato com operadores de outros países, onde essa estrutura de matriz energética, com componentes eólico e solar, está mais avançada para trocar experiência. E a expansão da solar FV nos telhados pode ser explosiva. Na Alemanha, por exemplo, em dez anos, houve um salto de 10 mil para 1 milhão de unidades de solar/eólica, fazendo com que a geração solar respondesse por 100% do consumo em diversos momentos. Isso é bastante complexo, uma vez que é necessária inércia no sistema para controlar a operação”, disse Fontoura.
Para Castellano, do MME, o Brasil possui uma matriz elétrica singular, em que a participação das renováveis deve atingir até 80%, e, portanto, necessita desenvolver um modelo de operação próprio. “Temos de aproveitar experiências, mas com foco na estrutura brasileira. É preciso criar uma forma de operar um sistema que é dependente da natureza, bem diferente de outros países”.
Distribuição: A geração distribuída (GD), impulsionada principalmente pela geração solar fotovoltaica, também tem impactado a área de distribuição de energia. De acordo com o diretor executivo da EDP, a competição entre as concessionárias de distribuição tem sido incentivada pela GD. “A EDP já concorre com outras distribuidoras em suas áreas de concessão, uma vez que o consumidor pode ser cliente da EDP no segmento solar e compensar a energia consumida da distribuidora da região. Em vez dos agentes regulatórios, o foco das distribuidoras passa a ser a excelência no atendimento ao cliente, para cativá-lo”.
Segundo Hugo Yamaguchi, assessor da diretoria de fiscalização dos serviços de geração de energia e regulação da Arsesp Agência Reguladora de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo, com a convergência das distribuidoras para a prestação de serviços e relacionamento com o consumidor, o cliente terá mais força e flexibilidade para negociar, e demandará cada vez mais um portfólio completo de serviços, que ultrapassa a GD, e inclui eficiência energética, confiabilidade de fornecimento, previsibilidade de custo, soluções personalizadas, etc. “As distribuidoras terão o desafio de se tornarem multi-utilities”. Contudo, de acordo com o assessor, para incentivar a concorrência tendo em vista a modicidade tarifária é necessário o avanço da regulação. “O aprimoramento do marco legal do setor elétrico é uma iniciativa do governo federal para mitigar riscos e baratear o custo da energia, além de aumentar a proatividade de geradoras e distribuidoras”. Ele aponta a redução gradual dos limites de acesso ao mercado livre, que atualmente é de 3000 kW e deve chegar a 75 kW em 2028, como uma das principais mudanças previstas no documento, juntamente com a redução de riscos das distribuidoras em relação à contratação de energia, separação de lastro e energia, alterações nos descontos tarifários e PLD (Preço de Liquidação de Diferenças) horário.