Mauro Sérgio Crestani, editor
Data: 19/06/2019
Edição: EM Março 2019 - Ano 47 - No 540
Compartilhe:No dia 28 de dezembro de 2018, a Portaria no 514 do Ministério de Minas e Energia abaixou o limite para que consumidores atendidos em qualquer tensão possam escolher seu fornecedor, de 3 MW para 2,5 MW a partir de 1o de julho de 2019, e para 2 MW em 1o de janeiro de 2020. Trata-se da primeira redução dos limiares para emigração de consumidores cativos para o mercado livre desde que este foi criado, em julho de 1995, pela Lei 9074. Isso, a despeito de a própria lei (em seu parágrafo 3o do artigo 15) autorizar o poder concedente a diminuir, depois de oito anos da sua publicação, os limites de carga ali estabelecidos. A redução de carga só aconteceu após 24 anos, 15 depois de legalmente autorizada.
Além disso, ainda segundo a mesma lei, consumidores que já estavam ligados em 1995 só poderiam tornar-se livres se fossem atendidos em tensão igual ou superior a 69 kV, mesmo que preenchessem o requisito mínimo de carga. Essa restrição só foi eliminada com a Lei 13.360, de 2016, que liberou esses consumidores a partir de janeiro deste ano.
Um aspecto importante da redução de requisitos de carga relacionase com o chamado mercado de energia incentivada. Consumidores com carga entre 500 kV e 3 MW já podiam migrar para o ACL, mas somente na categoria de “especiais”, isto é, comprando energia de fontes incentivadas (solar, eólica, PCH, etc.). A portaria de dezembro retira essa limitação para os consumidores com carga acima de 2 MW, reduzindo a reserva de mercado das incentivadas, o que desagradou aos geradores de fontes renováveis. Por exemplo, a Abragel Associação Brasileira de Geração de Energia Limpa, que representa pequenas centrais hidrelétricas, pediu no início de janeiro a suspensão da portaria ao MME, defendendo a manutenção integral da política de incentivo à compra de energia de fontes renováveis. O pedido foi negado no final de janeiro.
Diversamente, Roberto Castro, membro do Conselho de Administração da CCEE, considera que a redução dos limites para o mercado livre de energia convencional é conveniente também para o mercado de energia incentivada. Em sua visão, com a provável migração de consumidores, a energia incentivada que estava comprometida com estes passa ser de livre negociação com novos agentes que podem entrar nesse mercado. “Isso dá mais lastro e possibilidade a essa negociação. É um círculo virtuoso”, afirmou ele a EM.
Mesmo com as restrições vigentes até aqui, o mercado livre já reponde por 33% do consumo total de energia elétrica do País. Apenas em 2018 cresceu 6,3%, atingindo 156,6 TWh, enquanto o consumo do mercado regulado caiu 1,3%. Mas resta ainda um imenso campo para crescimento. A CCEE Câmara de Comercialização de Energia Elétrica calculou o impacto da redução dos limites de demanda estabelecidos pela portaria do MME. Segundo esse levantamento, os novos limites tornarão possível que 1198 unidades consumidoras deixem o chamado “mercado especial” para ingressar no mercado livre, totalizando consumo anual de 1773 MW médios (MWm), sendo 745 unidades e 1326 MWm em julho próximo, e 453 unidades e 447 MWm em janeiro do ano que vem. Essa quantidade de consumidores perfaz apenas 10,9% dos registrados na CCEE, mas representa 37,7% do consumo. Considerando as unidades por ramos de atividade, o estudo mostra que o setor mais beneficiado percentualmente deve ser o de extração de minerais metálicos, com 78,9% de enquadramento nas novas regras (18 MWm de 23 MWm). Já em termos de energia, serão os segmentos alimentício, de manufaturados diversos e de serviços (veja figura).
Por mais expressivos que sejam esses dados, convém lembrar que a portaria do MME não amplia a quantidade de consumidores com acesso ao mercado livre. Números mais exuberantes são dados por dois estudos feitos em 2017 pelo Ministério de Minas e Energia e pela Abraceel Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia, por ocasião da Consulta Pública (CP) no 33, que o MME realizou naquele ano para colher contribuições à sua proposta de reformulação do marco legal do setor elétrico.
Assinado pela empresa de consultoria PSR, uma das mais atuantes nos mercados de eletricidade e gás, o trabalho da Abraceel avalia que a abertura do mercado para todos os consumidores do nível de tensão A4 pode se dar em 2021 e, para os da baixa tensão, incluindo os residenciais, em 2024. Em entrevista a EM, o presidente executivo da Abraceel, Reginaldo Medeiros, afirmou que a liberalização total nessa data geraria economia de aproximadamente R$ 12 bilhões por ano nas contas de energia, além de “423 mil novos empregos ao ano no País nos setores da indústria, comércio, serviços públicos e agronegócios”. Esses resultados, porém, dependem também de que as demais medidas derivadas da CP 33 sejam aprovadas pelo Congresso Nacional. Os pontos da proposta imprescindíveis para respaldo a essa transição seriam, segundo o diretor, descotização de usinas, despacho por oferta de preços, separação lastro e energia, a figura do supridor de última instância e a segregação total das atividades de “fio” e de fornecimento de energia nas distribuidoras.
A proposta de reforma foi enviada pelo governo ao Congresso Nacional no início de 2018 e hoje está integrada ao projeto de lei 1917/2015 na Câmara dos Deputados. Com base no estudo do MME e nas contribuições da consulta pública, ela prevê uma abertura menos abrangente e célere: diminuição em quatro etapas, a partir de 2021, do requisito de carga mínimo para os consumidores exercerem a livre escolha do fornecedor, até abranger todo o segmento de alta tensão em 2028, quando o limiar ficaria reduzido a 75 kW (todo o subgrupo tarifário A4). Esse cronograma teria o condão de incluir 182 mil novas empresas industriais e comerciais ao mercado livre, com migração prevista de 4,8 GW médios, proporcionando economia de quase R$ 3 bilhões por ano para esses consumidores, segundo estimativas da Abraceel. Mesmo que distintos agentes possam não concordar com sua abrangência e ritmo, a implantação oficial do cronograma é vista como a indicação da vontade política para a abertura do mercado, independentemente do prazo estabelecido.
Com sua progressividade mais elástica, a proposta é considerada adequada por vários especialistas e executivos do setor, caso de Roberto Castro, conselheiro da CCEE. Ele acredita ser fundamental um cronograma muito bem estabelecido para que o benefício da evolução do mercado livre não traga como efeito colateral a ruptura nos atuais contratos. O gradualismo da abertura, portanto, permitiria uma acomodação tanto de ponto de vista contratual quanto regulatório.
Até porque ainda será necessário remover barreiras, algumas bem robustas, antes de se pensar em ampliar o universo de contratação livre de energia. Uma delas, já velha conhecida, é a judicialização de dívidas do setor, que se arrasta desde 2013 e hoje provoca num represamento de R$ 7 bilhões no âmbito da CCEE, derrubando a liquidez do mercado. De acordo com Roberto Castro, atualmente mais de 90% dos agentes recebem apenas 4% do que têm em haver no mercado de curto prazo. “Não temos no mundo exemplo de mercado maduro em que o mercado de curto prazo não funcione. O mercado de curto prazo é o mercado mais importante? Não. Ele é só um mercado de diferenças. Mas é essencial. Se ele não funciona, não se retroalimenta o processo de modo que ele seja azeitado, que haja liquidez.”
Outra questão, que vem se somar a esta, tem caráter mais conjuntural e revela um ponto fraco do próprio funcionamento do mercado. No início deste ano, algumas comercializadoras apresentaram dificuldades em honrar contratos, sendo que duas delas passaram ao estágio de “operação assistida” pela CCEE. O motivo de origem é uma prática comum das negociações bilaterais chamada de “registro contra pagamento”, quando a parte vendedora só registra o contrato de venda depois do pagamento da contraparte compradora. Nesse ínterim, os contratos ficam na condição “de gaveta”, desconhecidos pela CCEE. A prática não é ilegal, mas gera riscos, como se verificou. A expectativa para o início de 2019 era de chuvas volumosas e, com elas, de um preço do mercado de curto prazo (o Preço de Liquidação das Diferenças) muito baixo. Confiando nisso, comercializadoras negociaram contratos futuros em negociações bilaterais sem garantias financeiras e sem registro prévio na CCEE, contando que poderiam comprar energia barata no mercado à vista. Assumiram, portanto, o risco, que então parecia pequeno. O problema é que as tais chuvas não apareceram, as vazões não aumentaram como esperado, o PLD bateu no teto e duas empresas não cumpriram os contratos de venda. Segundo Roberto Castro, esse procedimento deve ser aperfeiçoado para elevar a segurança, antes de mais consumidores serem admitidos no mercado livre. “Precisamos evoluir no processo de garantias e fortalecer a relação dentro desse mercado, pois do contrário os consumidores que vão entrar precisariam de uma estrutura muito grande para fazer hedge de risco”, diz. A CCEE está estudando formas de induzir as comercializadoras a registrarem seus contratos, tirando-os da gaveta, sendo uma das possibilidades e exigência de aporte de garantias on-line (veja boxe abaixo).
Já no que se refere à judicialização em razão do risco hidrológico, a solução não dependerá exclusivamente da ação dos agentes do setor, isoladamente ou em conjunto. O caminho considerado mais viável pelo conselheiro da CCEE é o parlamentar. Mais especificamente, o de dois projetos de lei (PL) que aguardam seguimento na Câmara dos Deputados: o PL 1917/2015, que inclui toda a proposta da CP 33 e a portabilidade da conta de luz, e o PL 10.985, que também dispõe sobre uma possível solução para o risco hidrológico.
Essa visão de Castro é compartilhada por outro especialista ouvido por EM, Luiz Augusto Barroso, diretor-presidente da empresa de consultoria PSR. “O caminho é seguir as propostas da CP33, nas quais tive o prazer de trabalhar, que adaptam o marco regulatório brasileiro a novas tecnologias e o preparam para a abertura do mercado de forma sustentável”. Barroso, que de 2016 a 2018 foi presidente da EPE Empresa de Pesquisa Energética, vinculada ao Ministério de Minas e Energia, lembra que há arranjos comerciais e direitos existentes no marco regulatório atual formando um conjunto grande de legados que devem ser preservados quando o ACL aumentar de tamanho. Um exemplo são os contratos de longuíssimo prazo no portfólio das distribuidoras, que geram risco de sobrecontratação por causa da perda de parcelas do mercado cativo.
Em sua opinião, é essencial avançar de forma ordenada na abertura do mercado, para que esta seja feita de maneira organizada, principalmente em relação à expansão da oferta de geração. Embora hoje o mercado livre já consiga assegurar a expansão da oferta para suprir parte de seu crescimento orgânico, o mercado regulado ainda é o maior responsável por assegurar a expansão da oferta de energia elétrica do País, diz Barroso. “Como cada MW pago pelo mercado regulado atende fisicamente os mercados regulado e livre, existe um subsídio do mercado regulado ao livre na expansão da oferta”. E existem também custos alocados exclusivamente ao ACR ambiente de contratação regulado que criam possibilidades de arbitragem de preço sem risco para ACL ambiente de contratação livre. “O mercado livre incentivado, por exemplo, convive com subsídios que lhe dá uma vantagem competitiva. Estes subsídios não são necessários, visto que as fontes que são incentivadas hoje não precisam mais do incentivo, pois já atingiram sua maturidade econômica em todo o mundo, inclusive no Brasil.”
No entender dos analistas, portanto, é a via da legislação, e não a da justiça, que trará a solução do problema. Ainda que a solução não seja, de saída, a mais completa e perfeita. Para Reginaldo Medeiros, da Abraceel, a reforma do modelo deve ser aprovada o mais rapidamente possível pelo Congresso Nacional, pois é o “consenso possível no setor elétrico” e, a partir de então, ser regulamentada pelo poder concedente e pela Aneel. Segundo ele, é preciso impedir “o velho setor elétrico [de] minar a ideia”, contrapondo minúcias que podem ser resolvidas na regulamentação da matéria. Para Medeiros, a principal barreira para a mudança no modelo comercial do setor elétrico é cultural.
O dirigente menciona um “Ranking Internacional de Liberdade de Energia Elétrica” elaborado pela Abraceel, no qual o Brasil ocupada a 55a posição entre 56 países, estando à frente apenas da China, que iniciou recentemente seu processo de abertura. “A questão do direito de escolha dos consumidores claramente ultrapassa as fronteiras do setor elétrico, não obstante parecer normal a muitos que o Estado se reserve o papel de coibir um direito fundamental dos consumidores, ao arrepio da cidadania e da lógica econômica.”