Lançamento de efluentes em corpos hídricos


O lançamento de grandes volumes de efluente tratado em corpos hídricos, mesmo após tratamento eficiente, pode violar a capacidade do manancial. Não é razoável o despejo sem uma avaliação prévia da capacidade de suporte do corpo receptor.


Raphael Pierotte Mello de Freitas, mestrando da UFF – Universidade Federal Fluminense, e Mônica de Aquino Galeano Massera da Hora, profa. da UFF

Data: 26/11/2016

Edição: Hydro Novembro 2016 Ano XI No 121

Compartilhe:

A capacidade de suporte do corpo receptor é fundamental para a gestão dos recursos hídricos

No Brasil, o gerenciamento dos recursos hídricos for firmado através da Política Nacional de Recursos Hídricos, Lei 9.433 de 8 de Janeiro de 1997. Em seus fundamentos, essa lei indica que a gestão dos recursos hídricos deve ser realizada de forma integrada, ao abordar aspectos sociais, como a participação dos usuários e das comunidades; econômicos, como a valorização econômica da água como um recurso natural limitado; e ambientais, ao considerar que o uso múltiplo das águas deve ser respeitado.

A diversidade de fatores envolvidos na utilização dos recursos hídricos torna imprescindível seu adequado gerenciamento, como uma estratégia para assegurar uma distribuição equilibrada.

Nesse contexto, o presente trabalho tem a finalidade de fazer uma análise sobre a atual situação da gestão dos recursos hídricos no país e no Estado do Rio de Janeiro, com foco no lançamento de efluentes em corpos hídricos.

Metodologia

O estudo foi construído a partir de revisão bibliográfica e da legislação correlata, buscando reunir informações, políticas e normas relacionadas à gestão de recursos hídricos e, mais especificamente, ao lançamento de efluentes em corpos hídricos. Um exemplo fictício foi elaborado com o intuito de ilustrar uma situação prática e avaliar as recomendações da legislação vigente.

Revisão da legislação

Os instrumentos para o gerenciamento dos recursos hídricos, de acordo com a Lei 9.433/97 (Art. 5°), são os planos de recursos hídricos; o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água; a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos; a cobrança pelo uso de recursos hídricos; a compensação a municípios; e o sistema de informações sobre recursos hídricos.

Dentre esses instrumentos, destacam-se, para a realização do presente estudo, o enquadramento dos corpos de água em classes, e a outorga dos direitos de uso de recursos hídricos.

Enquadramento do corpo de água

De acordo com a Lei 9.433/97 (Art. 9°), o enquadramento dos corpos de água em classes, segundo os usos preponderantes da água, visa assegurar às águas qualidade compatível com os usos mais exigentes a que forem destinadas e diminuir os custos de combate à poluição das águas, mediante ações preventivas permanentes.

A Resolução Conama n.° 357, de 17 de março de 2005, regulamenta o artigo referido, ao dispor sobre a classificação dos corpos de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento. Quanto à classificação dos corpos de água, a Resolução diz, em seu artigo 3°, que as águas doces, salobras e salinas do território nacional são classificadas, segundo a qualidade requerida para os seus usos preponderantes, em 13 classes de qualidade e que as águas de melhor qualidade podem ser aproveitadas em usos menos exigentes.

No que se refere às diretrizes ambientais para o enquadramento dos corpos de água, a Resolução citada dispõe, em seu Artigo 38°, que o enquadramento do corpo hídrico será definido pelos usos preponderantes mais restritivos da água, atuais ou pretendidos, devendo ser estabelecidas metas nas bacias hidrográficas em que a condição de qualidade dos corpos de água esteja em desacordo com os usos preponderantes pretendidos.

Por fim, em relação ao enquadramento, no Estado do Rio de Janeiro, é relevante destacar o Artigo 17° da Lei Estadual n°3.239, de 2 de agosto de 1999, o qual menciona que os enquadramentos dos corpos de água, nas respectivas classes de uso, serão feitos, na forma da lei, pelos CBHs – Comitês de Bacia Hidrográfica e homologados pelo CERHI – Conselho Estadual de Recursos Hídricos, após avaliação técnica pelo órgão competente do poder executivo.

Portanto, o enquadramento dos corpos hídricos deve ser entendido como o instrumento que fornecerá sua capacidade de suporte, uma vez que os valores máximos para os parâmetros regulamentados são estabelecidos de acordo com a classe em que o corpo hídrico foi enquadrado. Logo, a legislação preconiza que os valores máximos dos parâmetros regulamentados serão estabelecidos a partir dos usos preponderantes mais restritivos da água, atuais ou pretendidos.

Outorga dos direitos de uso de recursos hídricos

De acordo com o INEA – Instituto Estadual do Ambiente, a outorga pode ser definida como o ato administrativo de autorização por meio do qual o órgão gestor de recursos hídricos faculta ao outorgado o direito de uso dos recursos hídricos, superficiais ou subterrâneos, por prazo determinado, nos termos e nas condições expressas no respectivo ato. Seu objetivo é assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água e o efetivo exercício dos direitos de acesso aos recursos hídricos.

Logo, a outorga dos direitos de uso dos recursos hídricos é requerida tanto para captação de água quanto para o lançamento de efluentes, devendo o órgão ambiental avaliar o impacto da atividade nos corpos hídricos.

Portanto, a outorga para lançamento de efluentes deve ter profunda relação com o enquadramento do corpo hídrico, uma vez que a primeira deve ser concedida com base no segundo, ou seja, a outorga deve ser concedida se o lançamento não causar alteração maior que a permitida no corpo hídrico, para o parâmetro analisado.

Legislação federal sobre lançamento de efluentes nos corpos hídricos

Um dos usos da água que gera mais conflito é a diluição de despejos. Como esse uso pode prejudicar quase todos os outros, é fundamental que os órgãos gestores dos recursos hídricos sejam rigorosos em relação a tal fim.

A Resolução Conama n° 430, de 13 de maio de 2011, que dispõe sobre as condições e padrões de lançamento de efluentes, complementa e altera a Resolução n° 357/2005, definindo em seu artigo 4° a capacidade de suporte do corpo receptor como o valor máximo de determinado poluente que o corpo hídrico pode receber, sem comprometer a qualidade da água e seus usos determinados pela classe de enquadramento. Em seu artigo 5°, a Resolução menciona que os efluentes não poderão conferir ao corpo receptor características de qualidade em desacordo com as metas obrigatórias progressivas, intermediárias e fi nal, do seu enquadramento. Já no artigo 7°, a Resolução dispõe que o órgão ambiental competente deverá estabelecer a carga poluidora máxima para o lançamento de substâncias passíveis de estarem presentes ou serem formadas nos processos produtivos, de modo que as metas para o enquadramento do corpo receptor não sejam comprometidas. Finalmente, em seus artigos 12° e 13°, a referida Resolução estabelece que o lançamento de efluentes em corpos de água, com exceção daqueles enquadrados na classe especial, não poderá exceder as condições e padrões de qualidade de água estabelecidos para as respectivas classes, nas condições da vazão de referência ou volume disponível, além de atender outras exigências aplicáveis.

Conclui-se que o órgão ambiental apenas deve permitir o lançamento de efluentes que não exceda as condições e padrões de qualidade de água estabelecidos para as respectivas classes, sendo uma exceção a situação em que existem metas obrigatórias estabelecidas, em corpos de água em recuperação. Ainda assim, nessa situação, o lançamento de efluentes não poderá causar violação dos padrões de qualidade determinados pelas metas estabelecidas no plano de recursos hídricos.

Ainda no âmbito federal, são também de grande relevância as resoluções do CNRH – Conselho Nacional de Recursos Hídricos – e da ANA – Agência Nacional de Águas.

A Resolução CNRH n° 140, de 21 de março de 2012, que estabelece critérios gerais para outorga de lançamento de efluentes com fins de diluição em corpos de água superfi ciais, dispõe em seu artigo 4o: Na análise dos pedidos de outorga de lançamento de efluentes com fins de diluição em corpos de água superficiais serão observadas:

  1. As características quantitativas e qualitativas dos usos dos recursos hídricos e do corpo receptor para avaliação da disponibilidade hídrica, levando em consideração os usos outorgados e cadastrados a montante e a jusante da seção em análise;
  2. As condições e padrões de qualidade, relativos aos parâmetros outorgáveis, referentes à classe em que o corpo de água estiver enquadrado ou às metas intermediárias formalmente instituídas;
  3. As vazões de referência;
  4. A capacidade de suporte do corpo de água receptor quanto aos parâmetros adotados; e
  5. Outras referências tecnicamente justificadas.

Além disso, no artigo 5o essa Resolução estabelece uma equação que deve ser utilizada no cálculo da vazão de diluição, representando a vazão necessária para diluir determinado parâmetro de qualidade, de forma a deixá-lo dentro dos limites do enquadramento da classe de uso do corpo hídrico.

A Resolução ANA no 219, de 6 de junho de 2005, em seu artigo 1°, dispõe que os parâmetros a serem analisados na outorga de lançamento de efluentes em cursos d’água de domínio da União são: temperatura, demanda bioquímica de oxigênio e, em locais sujeitos à eutrofização, ao fósforo ou ao nitrogênio.

Legislação estadual sobre lançamento de efluentes nos corpos hídricos

No Estado do Rio de Janeiro, a diretriz de controle de carga orgânica biodegradável em efluentes líquidos de origem sanitária – DZ-215.R-4, de 08 de novembro de 2007, estabelece as exigências de controle de poluição das águas que resultem na redução de carga orgânica biodegradável de origem sanitária. Em sua introdução, a diretriz dispõe que adotará o enfoque de níveis mínimos de remoção de carga orgânica e sólidos em suspensão para dimensionamento de tratamento de efluentes sanitários, baseados em níveis da tecnologia existente, independentemente da capacidade assimilativa dos corpos receptores.

Assim sendo, pode-se concluir que a diretriz adota um enfoque diferente do especificado na Resolução Conama no 430/2011. Dessa forma, a norma estadual não obriga que os padrões de qualidade estabelecidos para o corpo hídrico sejam respeitados, nem indica que o lançamento de efluentes deve atender às metas obrigatórias estabelecidas para os corpos de água em questão.

Por outro lado, a norma técnica que estabelece critérios e padrões para lançamento de efluentes líquidos – NT-202.R-10, de 04 de dezembro de 1986, adota um enfoque similar à Resolução Conama no 430/2011, ao mencionar que os efluentes líquidos não deverão conferir ao corpo receptor características em desacordo com os critérios e padrões de qualidade de água adequada aos diversos usos benéficos previstos para o corpo d’água.

Avaliação de uma situação hipotética

Com o objetivo de visualizar uma situação prática relacionada ao lançamento de efluentes nos corpos hídricos, foi elaborado um exemplo em que seriam aplicadas as recomendações da legislação vigente.

A legislação federal, mesmo adotando o enfoque de capacidade assimilativa do corpo receptor, superestima esse potencial ao recomendar a utilização da concentração natural do parâmetro analisado no rio (Resolução CNRH n° 140/2012), em vez de sua concentração atual. De acordo com a fórmula recomendada para o cálculo da vazão de diluição, deve-se utilizar a concentração natural do poluente no rio para o lançamento.

Tal abordagem acaba fazendo com que a condição atual do corpo hídrico no ponto do lançamento não seja levada em consideração, admitindo-se que todos os trechos possuem a mesma concentração do poluente a ser descartado. Essa simplificação causa uma falsa impressão de que a capacidade de diluição do manancial é maior que a real, o que aumentará a possibilidade de violação do padrão de qualidade estabelecido.

Seguindo a legislação do Estado do Rio de Janeiro, no caso de carga orgânica de origem sanitária, apenas a carga lançada seria levada em consideração, correlacionando-a com uma eficiência mínima de tratamento, deixando de lado o corpo hídrico que receberá essa carga. Dessa forma, um lançamento de grandes proporções, mesmo sendo tratado com boa eficiência, pode violar a capacidade do manancial quando sua vazão for pequena.

Conclusões

A gestão de recursos hídricos tem alcançado grandes avanços nos últimos anos, principalmente no que se refere a esferas legislativa e normativa. A legislação federal representa um grande marco que deve ser seguido e aprimorado pelos Estados.

O conceito de capacidade de suporte, adotado pela legislação federal, é de fundamental importância para uma equilibrada gestão dos recursos hídricos. Entretanto, a partir do presente estudo, conclui-se que a utilização da concentração natural do parâmetro de qualidade para o corpo hídrico, na equação recomendada pela Resolução CNRH n°140/2012 para o cálculo da vazão de diluição de efluentes, tem validade apenas para a formulação da cobrança pela utilização dos recursos hídricos no trecho do lançamento, uma vez que essa abordagem permite a avaliação do impacto que cada usuário causa nas condições naturais do manancial. Para outorga, considera-se que essa abordagem não retrata a condição real do corpo hídrico, acarretando em uma superestimação de sua capacidade de suporte, o que dificulta a manutenção dos padrões de qualidade estabelecida para o corpo d’água.

Com relação à legislação estadual, considera-se fundamental que adote o enfoque de capacidade assimilativa dos corpos receptores em todas as suas normas, assim como faz a legislação federal. Não faz sentido, para a gestão de recursos hídricos, que o lançamento de efluentes seja baseado apenas nos níveis de tecnologia existente para seu tratamento, ignorando-se a capacidade de suporte do corpo hídrico que será impactado. Além disso, a tecnologia de tratamento de efluentes tem alcançado níveis cada vez mais elevados de eficiência, possibilitando inclusive o seu reúso em diversas atividades. Não é razoável o despejo sem uma avaliação da capacidade de suporte do corpo receptor.