Francisco Carlos Castro Lahóz e Flavio Forti Stenico, engenheiros, e Murilo Ferreira de Sant’Anna, jornalista
Data: 08/03/2017
Edição: Hydro Janeiro 2017 - Ano XI - No 123
Compartilhe:No período compreendido entre os anos de 2013 e 2015, as bacias hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Bacias PCJ), no interior de São Paulo, e do Alto Tietê, na capital paulista, passaram pela sua pior estiagem dos últimos 90 anos. Esse fenômeno atípico, somado às captações acima das vazões de afluência dos reservatórios de regularização do Sistema Cantareira, provocou o seu colapso. Isso fez com que o nível dos principais reservatórios de abastecimento de água da RMSP – região metropolitana de São Paulo e do único sistema de reservação capaz de complementar o abastecimento da bacia do Rio Piracicaba chegasse a patamares nunca antes observados em sua série histórica.
Em função desses eventos extremos que atingiram a Região Sudeste do Brasil, as reservas hídricas dos sistemas de armazenamento se esgotaram, ou seja, todo o volume útil do Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de 5,5 milhões de pessoas nas Bacias PCJ, e 50% da população da Grande São Paulo (9 milhões de pessoas), foi consumido. Trata-se de uma situação extremamente grave, pois quando volumes de reservatórios são rebaixados a menos de 30%, conforme referência cabalística do setor, torna-se muito difícil sua recuperação.
Tal situação de estresse hídrico evidenciou a ocorrência de evento climático extremo seco, afetando o abastecimento de municípios, agricultores e empresas, colocando em risco a sustentabilidade e a qualidade de vida das populações envolvidas, com reflexo direto na economia do país pelo fato de tais regiões abrigarem dois dos maiores polos tecnológicos/ industriais do país.
Nos últimos anos já havia registros de vazões naturais afluentes mais baixas, evidenciando a diminuição da capacidade do sistema. Por exemplo, dados da ANA/DAEE indicam que o mês fevereiro, historicamente com as maiores vazões de afluência do sistema, com média histórica na ordem de 65,14 m3/s, registrou no ano de 2014 apenas 8,47 m3/s, constatando a redução drástica do volume de água afluente. Em fevereiro de 2015 as vazões subiram para 36,55 m3/s, ficando ainda 55% abaixo da média histórica.
Segundo estudo atualizado pelo Consórcio PCJ em 2014, a disponibilidade hídrica em épocas de estiagem nas Bacias PCJ e do Alto Tietê, que já eram consideradas extremamente baixas, tornaram-se ainda menores, com a redução da disponibilidade hídrica de 408 para 298,79 m3/hab/ano nas bacias PCJ e de 208 para 49,62 m3/hab/ano na bacia do Alto Tietê. São valores muito abaixo dos 1000 m3/hab/ano estabelecidos como padrão mínimo pela ONU.
O presente trabalho tem como foco expor uma solução que permita garantir níveis constantes nos reservatórios do Sistema Cantareira.
Assim sendo, como forma de solucionar esses problemas e aumentar a disponibilidade hídrica das Bacias PCJ e do Alto Tietê, identificou-se a possibilidade de implantar plantas de dessalinização no litoral Paulista, permitindo que estas mantenham através de adutoras o sistema com no mínimo 80% de sua capacidade máxima de reservação ao longo dos 365 dias do ano, respeitando-se os 20% de volume para espera, para o caso de ocorrência de evento extremo chuvoso. Existe também a possibilidade de utilizar as vazões produzidas pelas plantas de dessalinização, e distribuída pelas adutoras, diretamente para reforçar os reservatórios da RMSP, proporcionando uma redução de sua atual dependência em captar água nos reservatórios do Sistema Cantareira, favorecendo assim sua recuperação.
A partir da observação das alternativas existentes, verificou-se a possibilidade de utilização da tecnologia de dessalinização pelo fato de garantir vazões ilimitadas de água independentemente das características climáticas existentes. O ponto de partida foi uma visita técnica em outubro de 2015 à cidade de Tel Aviv, Israel, para conhecer a Sorek. Trata-se de uma das maiores plantas de dessalinização do mundo com capacidade para tratar 150 milhões de metros cúbicos de água salina por ano, o equivalente a 7 m3/s.
A dessalinização da água do mar mostrou-se uma alternativa viável e consistente para a ampliação da oferta hídrica da RMSP e Bacias PCJ, uma vez que o avanço tecnológico tem possibilitado o reaproveitamento de energia nos sistemas de dessalinização, garantindo menores custos na produção da água dessalinizada.
Desse modo, empregou-se uma linha metodológica que, através de um processo seletivo convergente das tecnologias existentes e da real disponibilidade hídrica, permitisse a identificação de uma alternativa ousada, porém viável e possível de ser empregada, que garantirá disponibilidade hídrica potencialmente ilimitada uma vez que seria o oceano a solução para o equacionamento do balanço hídrico dessas regiões. Como forma de calcular a distância existente entre o litoral paulista e os reservatórios do Sistema Cantareira, assim como sua cota de altitude e possível traçado, foi utilizado o software livre Google Earth. Já os custos referentes aos sistemas de dessalinização e transporte da água dessalinizada foram estipulados através de estimativas e comparações com parâmetros de projetos já existentes, visto que o orçamento completo envolveria estudo minucioso dos sistemas envolvidos.
Segundo a IDA – Associação Internacional de Dessalinização, a dessalinização da água do mar e de águas salobras é comum em países desérticos ou com pouca disponibilidade de água potável, como Oriente Médio e África, entretanto os avanços tecnológicos e a redução de custos fizeram com que o seu uso fosse difundido em cerca de 150 países, como Austrália, EUA, Espanha e Japão.
Por exemplo, na usina de Sorek, cujo processo de tratamento da água do mar é feito a partir de membranas maiores do que as utilizadas em outros sistemas de tratamento. Enquanto as membranas convencionais possuem diâmetro de 20 cm, as de Sorek são duas vezes maior, com cerca de 40 cm. A vida útil dessas membranas costuma ser, em média, de cinco anos, podendo chegar até a 12 anos.
O tratamento para dessalinizar a água é feito por osmose reversa, sendo necessário energia elétrica para aumentar a pressão nos tubos de tratamento em 70 atmosferas, a mesma pressão verificada em profundidades de 700 metros. A energia utilizada nesse processo é reaproveitada, visto que a salmoura, resultante do processo de dessalinização, transmite mecanicamente sua energia acumulada à água filtrada, facilitando seu transporte. Esse mecanismo é semelhante ao funcionamento do êmbolo de uma seringa, quando se emprega pressão pelo posicionamento dos dedos para expelir o líquido de seu interior. No caso de Sorek, parte da força empregada para dessalinizar a água é reaproveitada para eliminar a salmoura. Esse movimento permite a economia de energia elétrica utilizada pela usina. A ideia é reduzir ao máximo o custo de produção da água.
O curioso é que o governo de Israel não investiu um dólar sequer na construção de Sorek. Para a licitação da obra, foi realizado um concurso, no qual o projeto com melhor tecnologia e menor custo sagrou-se vencedor. A empresa ganhadora ficou responsável pela elaboração dos projetos, construção e operação da usina por 35 anos. Após esse período, Sorek será repassada integralmente ao governo israelense.
No Estado de São Paulo, o custo para o tratamento da água do mar e o caminho até o abastecimento da população são os principais desafios para a dessalinização. No entanto, segundo especialistas, a dessalinização é viável e já deveria ter sido considerada e implantada no Estado, para tirar principalmente a sobrecarga das represas que abastecem a Grande São Paulo.
Como avaliação da viabilidade da alternativa exposta, pode-se dizer que independentemente dos valores e custos que poderão ser apresentados para a implantação desses sistemas, se a escassez hídrica inviabilizar o desenvolvimento e a sustentabilidade econômica das duas regiões que compõem grande parte da macrometrópole paulista, que representa 83% do PIB do Estado e aproximadamente 26% do PIB nacional, necessariamente tais soluções deverão ser implantadas, mesmo que tecnicamente mais onerosas.
Seria possível, por exemplo, captar água do mar nas cidades de Bertioga, Caraguatatuba ou Ubatuba, e após processo de dessalinização no local de captação, a água seria levada por meio de adutoras para os reservatórios Jacareí/Jaguari (Bacias PCJ), abastecendo os reservatórios do Sistema Cantareira.
Para efeito de cálculo estimativo, com a meta de garantir o menor comprimento do tubo de adução, optou-se pela adutora “Bertioga”. Ela parte de Bertioga passando por Mogi das Cruzes e São José dos Campos até o Rio Jacareí (demarcada na figura 1 com a cor laranja). A região escolhida também possui alta incidência de ventos que poderia viabilizar a instalação de parques eólicos que produziriam parte ou total da energia utilizada nos processos de dessalinização ou bombeamento de recalque, uma vez que o custo da energia elétrica necessária para produzir mil litros é, em média, de 8 kWh, equivalente ao consumo diário de uma casa de três quartos no Brasil.
A adutora “Bertioga” proposta possui uma extensão de 100 km retilíneos e um desnível de aproximadamente 844 metros, assim, se adotarmos linhas adutoras individuais paralelas construídas em cinco módulos de 7 m3/s cada, compatíveis para o transporte total de até 35 m3/s regularizando as vazões de retirada do sistema, teríamos o custo estimado para cada módulo de adutora de aproximadamente US$ 750 milhões. A estação de dessalinização que deverá ser instalada no litoral com capacidade de até 7m3/s, correspondendo a um módulo, implicaria custo de US$ 500 milhões (valor utilizado para a construção de Sorek). A construção de um reservatório de adução, junto à estação de dessalinização, custaria por volta de US$ 25 milhões. Assim sendo, é possível prever um custo total aproximado de US$ 1,3 bilhão para cada módulo a ser investido como forma de garantia do balanço hídrico.
Ressalta-se que caso exista, por qualquer motivo, inviabilidade técnica para a implantação da alternativa proposta neste artigo, os sistemas de dessalinização ainda poderão auxiliar no equilíbrio do balanço hídrico das regiões mencionadas, ou seja, a água dessalinizada no litoral poderá ser utilizada para abastecimento de indústrias e cidades da Baixada Santista, assim como da Baixada Fluminense, RJ. Tais alternativas indiretamente contribuiriam para a recuperação do Sistema Cantareira, pois proporcionariam a redução das vazões de transposição de água da RMSP para as cidades localizadas no litoral paulista, reduzindo sua dependência do sistema, assim como viabilizaria uma maior captação de água na Região do Vale do Paraíba do Sul para suprir as reservas do Sistema Cantareira.
A vantagem seria que nesses casos não haveria a necessidade de transpor a serra do mar nem a construção de adutoras de grande comprimento, reduzindo os custos da água dessalinizada.
O panorama geral apresentado sobre a importância da gestão da água na garantia da sustentabilidade hídrica e econômica das bacias hidrográficas do Alto Tietê e PCJ destacou os atuais problemas de estresse hídrico enfrentados pelas regiões envolvidas, assim como possíveis soluções a serem implantadas para a equalização dos níveis dos reservatórios do Sistema Cantareira.
Em função das constatações e dados apontados, conclui-se que a solução do problema envolve uma relação de investimento/retorno, e não custo/ benefício, ou seja, para a garantia efetiva da disponibilidade hídrica de tão importantes regiões metropolitanas e aglomerados urbanos, que representam grande parcela da atividade tecnológica e industrial do país, necessariamente soluções tecnicamente mais onerosas e grandes investimentos precisam ser feitos, incluindo ações voltadas à preservação de nascentes e conservação das áreas de recarga dos mananciais.
Entretanto, como já visto em outros países, é possível o governo licitar programas de dessalinização com o apoio da iniciativa privada visando à elaboração de projetos com melhor tecnologia e menor custo, onde a empresa vencedora viabiliza projetos, investidores e oferece ao contratante (governo) a água dessalinizada a um custo dentro do limite máximo estabelecido no edital de licitação.
Trabalho apresentado na 46a Assembleia Nacional da Assemae, realizada em maio de 2016, em Jaraguá do Sul, SC.