Paulo José Schiavon Ara e Daniel Setrak Sowmy, pesquisadores do IPT – Instituto de Pesquisas Tecnológicas e da Poli-USP – Escola Politécnica da Universidade de São Paulo
Data: 27/06/2017
Edição: Hydro Maio 2017 - Ano XI - No 127
Compartilhe:O uso da energia solar para fins de aquecimento de água no ambiente construído remonta ao século passado. Entre 1900 e 1910, os primeiros sistemas comerciais de aquecimento solar para residências foram instalados pela empresa Day & Night na Flórida, EUA [1]. Desde essa época, a expansão da tecnologia foi constante. Na década de 1970, especialmente, a crise do petróleo reduziu a oferta dos combustíveis fósseis e impulsionou decisivamente a aplicação da tecnologia solar térmica no ambiente construído.
Ao final de 2013, a capacidade total instalada de sistemas de aquecimento solar de água (SAS) no mundo atingiu a marca de aproximadamente 375 GWth, correspondendo a uma área de 535 milhões de m2 de coletores solares. Apesar da expansão, o mercado solar térmico tem crescido menos a cada ano [2].
Em 2011, a área instalada de coletores solares no mundo cresceu 14,3% em relação a 2010; em 2012 avançou 6,6% em relação a 2011; e em 2013 apenas 1,8% comparado com o ano anterior [2]. Dados nacionais comprovam essa desaceleração. Em 2013, o crescimento da área instalada foi de 19,8% em relação a 2012. Mas em 2014 o avanço em relação ao ano anterior foi de apenas 4,5% [3].
Nesse contexto, para alavancar o uso dos SAS torna-se cada vez mais importante a adoção das políticas de incentivo, que podem ser de vários tipos: leis e regulamentos, redução de impostos, financiamentos, campanhas de conscientização, projetos de pesquisa e desenvolvimento, cursos e treinamentos. Dentre esses mecanismos tem-se destacado cada vez mais em diversos países e mais recentemente no Brasil, as Leis Solares, conhecidas como “solar obligations” [4].
A cidade de São Paulo, seguindo essa tendência, por meio do decreto 49.148 de janeiro de 2008, regulamentou a Lei 14.459 de julho de 2007, incluindo no Código de Obras e Edificações do município a obrigatoriedade da instalação do SAS completo ou de sua infraestrutura em novas edificações na cidade.
Entretanto, hoje, pouco mais de nove anos após a regulamentação, não se observa uma grande inserção do aquecimento solar nas edificações no município. Certamente, isso se deve à possibilidade de dispensa da obrigatoriedade que a Lei Solar de São Paulo oferece aos empreendimentos que se enquadrarem no artigo 12 do decreto, conforme abaixo:
“A obrigatoriedade de instalação de Sistema de Aquecimento Solar não se aplica a edificações onde se comprove ser tecnicamente inviável alcançar as condições para aquecimento de água por energia solar [5]”.
Constata-se que muitos empreendedores acabam por obter a licença da obrigatoriedade nas edificações a serem implantadas valendo-se desse artigo do decreto, por meio da apresentação à prefeitura de um parecer técnico comprovando a inviabilidade do SAS para a obra em questão.
O estudo que apoia o parecer técnico deve possuir as características apresentadas no parágrafo 3 do artigo 12 do decreto:
“Os estudos técnicos deverão considerar o emprego da melhor tecnologia disponível, nos termos das recomendações técnicas do Inmetro e das normas técnicas vigentes, e deverão apresentar um parecer definitivo, com conclusões objetivas, bem como identificar claramente a obra a que se referem”. [5]
Dessa forma, um especialista técnico pode, por meio de um estudo, comprovar, por exemplo, a insuficiência de área disponível na cobertura do edifício para dispor a quantidade de coletores solares necessária e obter a licença da obrigatoriedade.
De acordo com a Lei, a área coletora deve ser tal que atenda a no mínimo 40% da demanda de água quente do edifício, de acordo com o método de dimensionamento do Anexo A do decreto. Esse método será chamado neste estudo de “método da Lei Solar”.
Vale ressaltar, porém, que existem diversos outros métodos de dimensionamento disponíveis aos projetistas de aquecimento solar. Dentre eles, pode-se citar o método da norma brasileira ABNT NBR 15569:2008, o software Dimensol desenvolvido no Brasil, os softwares internacionais Polysun e F-Chart, baseado no “método da Carta F”, entre outros. Este último pode ser aplicado também sem o software, por meio do equacionamento apresentado por Duffie e Beckman [6]. Por ser um método de dimensionamento introduzido há décadas, pode-se dizer que o “método da Carta F” é uma das práticas mais reconhecidas e consolidadas internacionalmente.
O objetivo deste estudo é analisar se o “método da Lei Solar” tende a superestimar a área de coletores solares facilitando a aplicação do artigo 12 do decreto e dispensando a edificação da obrigatoriedade do uso de aquecimento solar.
O método de referência para análise crítica do dimensionamento pela Lei Solar será o “método da Carta F”, que além das características anteriormente apresentadas, possui mais exatidão e consequentemente oferece resultados mais confiáveis.
O método utilizado neste trabalho segue o esquema da figura 1: as caixas destacadas em cinza são os parâmetros variáveis das simulações.
das simulações.Foi definido um edifício padrão a ser situado na cidade de São Paulo, com as características de cada unidade habitacional e o padrão de consumo de água quente conforme a tabela I.
Como referência para os parâmetros foram utilizados os dados apresentados por Kurb et al. [7] e pelo Guia de Parametrização da Lei Solar de São Paulo. A quantidade de andares do edifício (ou unidades habitacionais) consistiu em uma variável de simulação, sendo de 5 a 25 andares.
Foi definido um SAS a ser instalado no edifício, com coletores inclinados em um ângulo correspondente à latitude mais 10° (igual a 33,5° para São Paulo). O tipo de coletor e a sua orientação em relação ao Norte corresponderam a variáveis de simulação, conforme a tabela II. Quanto ao tipo de coletor foram escolhidos três coletores da tabela de Eficiência Energética do Programa Brasileiro de Etiquetagem do Inmetro, todos de classificação A (tabela II). Quanto à orientação do coletor, isto é, seus desvios em relação ao Norte, foram considerados valores de 0° a 90°. Ou seja, orientados ao Norte (condição ideal) e com desvios até o Leste ou Oeste (orientação de 90°).
A figura 2 compara os coeficientes da curva de desempenho térmico dos coletores da tabela II. Vale observar que todos têm classificação A conforme o Inmetro. Essa condição foi estabelecida neste estudo, pois o parecer técnico que comprova a inviabilidade do SAS deve considerar os coletores da melhor tecnologia disponível conforme o Inmetro [5].
Definido o edifício com sua demanda e o SAS, foram realizadas as simulações por ambos os métodos da Lei Solar e da Carta F, para calcular a área de coletores necessária para atender a 40% da fração solar, que é o mínimo exigido pela Lei. Por hipótese, considerou-se o edifício com laje plana sem sombreamento e que a única área disponível para a instalação dos coletores é a cobertura. Por fim, adotou-se o índice 1,6 utilizado no Guia de Parametrização da Lei Solar de São Paulo como razão entre a área total de cobertura necessária para o SAS e área da superfície dos coletores.
Para o método da Carta F, foi necessária a obtenção de dados climáticos da cidade de São Paulo. Os dados de radiação solar no plano horizontal foram obtidos do banco de dados solarimétricos disponibilizado pelo Cresesb – Centro de Referência para Energia Solar e Eólica Sérgio Brito [8].A conversão da radiação solar do plano horizontal para a inclinação e orientação do coletor foi realizada pelo Método K-T desenvolvido por Klein e Theilacker [9] e detalha-do por Duffie e Beckman [6].
Os dados de temperatura ambiente média mensal foram obtidos do Centro Integrado de Informações Agrometeorológicas (Ciiagro) [10] para a cidade de São Paulo. A temperatura de abastecimento de água fria foi obtida do Anexo A do decreto, e o valor da razão entre volume de reservatório de água quente e área coletora, necessário ao “método da Carta F”, foi colhido, para cada cenário, pelo método da ABNT NBR 15569:2008.
Por fim, as áreas mínimas necessárias de cobertura obtidas pelos métodos (Lei Solar e Carta F) foram comparadas. A área resultante da simulação pela Carta F foi tomada como referencia, tendo em vista a precisão do método. Se a simulação pelo “método da Lei Solar” resultar em uma área de cobertura maior que a da simulação pela Carta F, deduz-se que o método de dimensionamento que consta na Lei tende a superestimar a área a ser disponibilizada na cobertura e facilitar a elaboração de um parecer técnico que dispense o edifício do SAS, de acordo com o Artigo 12 do decreto.
Pelo “método da Lei Solar” a área coletora necessária é calculada de acordo com a equação 1:
AC = Fcd.F.E/PMESP (1)
onde:
Pelo “método da Carta F” determina-se a fração solar do SAS, para cada mês do ano, de acordo com a equação 2:
f = 1,029 . Y – 0,065 . X – 0,245 . Y2 + 0,00187 . X2 + 0,0215 . Y3 (2)
onde:
Calculadas as frações solares mensais para cada mês i (fi), obtém-se a fração anual (F) pela equação 3, utilizando as demandas mensais de energia térmica (Li) para cada mês i:
F = (Σfi . Li)/(ΣLi) (3)
Impondo um valor fixo de fração solar pode-se determinar a área coletora necessária para suprir essa fração F, que neste trabalho é 40%.
A figura 3 apresenta os resultados de radiação solar média diária simulada para cada mês do ano, em kWh/m2, para a inclinação de 33,5° e diferentes orientações dos coletores, em comparação com os dados obtidos para o plano horizontal.
Como esperado, a radiação global incidente no plano inclinado a 33,5° (linhas vermelha e verde) foi maior que a incidente no plano horizontal (linha azul) para os meses de inverno e menor para os meses de verão, quando a altitude solar é maior. A linha roxa mostra que a radiação solar para o plano inclinado a 33,5° e com desvio em relação ao Norte de 90° foi menor que para o plano horizontal em todos os meses do ano.
Para o edifício com 25 andares e os 3 tipos de coletores da tabela II, as simulações para fração solar de 40% resultaram nas áreas de cobertura ilustradas na figura 4, para orientação Norte; e na figura 5, para desvio do Norte de 45°.
A figura 4 mostra que, para a orientação Norte, a área de cobertura necessária pelo “método da Lei Solar” é aproximadamente 13%, 10% e 7% maior do que a área dimensionada pela Carta F, respectivamente, para os coletores 1, 2 e 3 da tabela II. Da mesma forma, a figura 5 mostra que, para a orientação Nordeste ou Noroeste (desvio de 45° em relação ao Norte), a área de cobertura necessária pelo “método da Lei” é aproximadamente 22%, 19% e 15% maior do que a área dimensionada pela Carta F, respectivamente para os coletores 1, 2 e 3.
Das figuras 4 e 5 pode-se observar que quando se utiliza o “método da Lei” com um coletor de classificação A, a área necessária de cobertura fica superestimada, considerando-se, conforme exposto anteriormente, que o valor resultante do dimensionamento pela Carta F é um valor mais exato. Por exemplo, para o coletor 1 da tabela II, a área de cobertura a ser disponibilizada é aproximadamente 18 m2 maior do que seria realmente necessária (Carta F), para a orientação Norte e aproximadamente 32 m2 maior do que seria realmente necessária, para orientação Nordeste ou Noroeste. Pelas figuras, observa-se também que conforme diminui a eficiência do coletor (do coletor 1 ao 3), a área adicional pelo “método da Lei” em relação à Carta F também diminui.
Quando se considera a variável quantidade de andares, a diferença entre a área demandada na cobertura pelo “método da Lei” e pela Carta F resulta nos valores indicados na figura 6, em metros quadrados de laje da cobertura, para os coletores orientados ao Norte.
A figura 6 mostra que a área adicional que a Lei exigiria em relação àCarta F cresce conforme aumenta a altura do edifício. A cada 10 andares, a diferença aumenta 10,1, 11,6 e 12,8 m2, respectivamente para os coletores 1, 2 e 3. É importante lembrar que todos os cálculos foram realizados para atingir a fração solar mínima da Lei, que corresponde a 40%.
Essas tendências também são observadas nas simulações para diferentes orientações dos coletores em relação ao Norte geográfico. A figura 7 ilustra as áreas de cobertura necessárias de acordo com ambos os métodos, para o edifício com 25 andares e o coletor 1. É interessante observar que enquanto a área de coletores, pela Carta F, cresce de forma não linear conforme avança o desvio do Norte, para o “método da Lei” esse crescimento ocorre “em degraus”, devido aos fatores de correção da tabela III.
A diferença entre as duas curvas, na figura 7, corresponde à área adicional de cobertura necessária pelo “método da Lei Solar”, em relação à Carta F, para o edifício de 25 andares e coletor 1. A diferença máxima é atingida quando o desvio em relação ao Norte é 40o, correspondente à área de aproximadamente 33 m2.Essa área equivale a um espaço de 5,5 m de comprimento por 6 m de largura, o que pode ser significativo para a cobertura de um edifício na qual estão alocadas outras funcionalidades e obstáculos.
Ao considerar o edifício e o sistema de aquecimento solar de água definidos neste trabalho, e tomando o método de dimensionamento da área coletora pela Carta F como referencial, conclui-se que o método de dimensionamento apresentado pela Lei Solar de São Paulo tende a superestimar a área coletora do SAS e consequentemente facilita a elaboração de um parecer técnico, conforme permite o artigo 12 da Lei, que dispense o edifício da obrigatoriedade do uso de aquecimento solar.
Sendo assim, sugere-se a revisão do método de dimensionamento da Lei Solar de São Paulo de forma que se aproxime da situação real sem, no entanto, torná-lo muito complexo para sua aplicação.