Por João Carlos Marchesan*
Nas duas últimas décadas, diversos choques afetaram profundamente as cadeias globais de valor. Tivemos a quebra do Lehman Brothers, em 2008, e a subsequente crise financeira, passamos pelo terremoto e tsunami que arrasaram a usina nuclear de Fukushima, em 2011, interrompendo a atividade de importantes fábricas japonesas. E enfrentamos a pandemia de Covid 19, que paralisou fábricas no mundo todo, causando insegurança e desabastecimentos.
Já a partir de 2011, nas cadeias de manufatura dos principais países produtores de bens industriais, o conteúdo importado parou de crescer e, regra geral, passou a declinar. As relações entre os EUA e China mudaram a partir de Trump, para uma atitude de rivalidade, e até de hostilidade, o que abalou ainda mais a globalização e, na sequência, a pandemia confirmou os riscos da excessiva dependência das cadeias globais e mostrou a importância da produção local.
Poder contar com um nível confortável de produção doméstica, tanto de insumos e equipamentos de saúde quanto de bens de capital e outros produtos essenciais à segurança nacional, passou a ser tão importante, depois desta crise pandêmica, como sempre foram a segurança alimentar, a militar e a energética. A redescoberta da importância da indústria está ocorrendo ao mesmo tempo de uma profunda mudança tecnológica, na própria indústria.
O surgimento de um novo paradigma produtivo, baseado na digitalização, na internet das coisas, na ampla utilização de sensores inteligentes e no uso intensivo de big data e da inteligência artificial, abre oportunidades a quem tiver vontade política para renovar o setor industrial e torná-lo mais competitivo. Condição indispensável tanto para aumentar a participação da indústria no PIB quanto para alcançar a “segurança industrial”.
Essa oportunidade tem sido percebida pelos países desenvolvidos mais importantes que, a partir da segunda metade da década passada, têm revisitado o papel do Estado na economia, mudando seu posicionamento e passando a defender tanto políticas públicas de desenvolvimento quanto políticas industriais, com o objetivo de aumentar a capacitação tecnológica e a competitividade de seus respectivos setores industriais e, assim, fortalecê-los.
Deixando de lado a China, onde o desenvolvimento sempre foi função do Estado, a Alemanha, com a “Estratégia Industrial Nacional 2030”, em fins da década passada, foi o primeiro país a declarar que passaria a apoiar ostensivamente sua indústria, protegendo-a contra aquisições externas, ajudando a capitaliza-la se necessário, e criando instrumentos adicionais de apoio financeiro e de P&D, para que a indústria crescesse dos 20% atuais para 25% do PIB até 2030.
Os Estados Unidos, além de perderem, nas últimas décadas, boa parte de sua manufatura e milhões de empregos de qualidade, exportados basicamente para a Ásia, perderam também a liderança tecnológica e produtiva em setores sensíveis como o de bens de capital sofisticados, insumos farmacêuticos e até na produção de circuitos integrados. A Intel, por exemplo, perdeu 2/3 do mercado que tinha há vinte anos, bem como a liderança tecnológica na fabricação de chips.
Com a eleição de Biden, o governo americano passou a defender um plano ambicioso, com um vasto conjunto de ações, coordenadas pelo Estado, contando com recursos superiores a 5 trilhões de dólares para recuperar a infraestrutura, gerar empregos de qualidade, investir em P&D e mão de obra, assim como apoiar a reindustrialização do país, para trazer de volta boa parte da produção exportada e recuperar e manter a liderança tecnológica nos setores-chave da economia.
O Brasil, com a adesão às regras do “Consenso de Washington” e com a adoção do neoliberalismo, pelos governos que se sucederam, a partir da década de 90, abandonou o modelo de desenvolvimento baseado na industrialização, e crescimento econômico, que foi o projeto do País que uniu sociedade e governo, desde Vargas até os governos militares, substituindo-o pela preocupação com a inflação e com as contas públicas.
Foi a industrialização que transformou o Brasil, ao longo de meio século, de uma grande fazenda em um país relativamente desenvolvido, o que nos permitiu figurar entre as mais importantes economias mundiais, fazendo os brasileiros sonharem com a real possibilidade de virmos a ser um país de primeiro mundo. A partir da década de 80, perdemos o caminho do crescimento e, de um país de construtores e industriais, passamos a ser um país de economistas e contadores.
O ano do bicentenário da proclamação da independência é uma boa ocasião para o Brasil retomar o caminho do crescimento, restabelecendo como sua prioridade o desenvolvimento, com redução das desigualdades e intensificação do respeito ao meio ambiente. Entretanto, manter o câmbio competitivo, um controle eficaz do endividamento público e juros baixos são itens que, por mais importantes que sejam, são apenas meios e não fins em si mesmos.
Um plano sério para controlar as contas públicas é essencial para o Estado recuperar, desde já, sua capacidade de fazer políticas anticíclicas e retomar os investimentos em infraestrutura, essenciais para gerar empregos, criar demanda para a indústria e melhorar a competitividade da economia brasileira. Isso permitirá reduzir os juros reais básicos, abaixo do crescimento do PIB, garantindo a redução da relação dívida/PIB e eliminando pressões sobre o câmbio.
Ainda que essas condições sejam necessárias para a retomada do crescimento, não serão suficientes sem a utilização de políticas públicas de desenvolvimento, como mostram os exemplos já citados. Não se trata, simplesmente, de recuperar fábricas fechadas e sim de construir uma nova indústria, fortalecendo seus setores mais dinâmicos, aqueles mais intensivos em tecnologia e com mais capacidade para trazer ganhos de produtividade que se espalhem por toda a economia.
Recuperar o desenvolvimento como prioridade da sociedade e da vontade política do Estado é fundamental para se alcançar esses objetivos, como nossa própria experiência histórica já demonstrou. Uma indústria competitiva, complexa e diversificada é o caminho mais eficiente para crescer de forma sustentada a taxas iguais ou superiores à média mundial. Para construí-la, a mão visível do Estado terá que ser usada com todos os seus instrumentos.
*João Carlos Marchesan é presidente do Conselho de Administração da Abimaq.
Imagem: Pixabay
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