O mundo passa nesse momento por um dilema inédito: ao mesmo tempo em que a demanda por tecnologia vem aumentando, a capacidade de produção de chips de processamento está diminuindo.
Para poder entender esse fenômeno, a Associação Brasileira de Internet Industrial (ABII) convidou dois especialistas que atuam em empresas a ela associadas para tirar algumas dúvidas. Os especialistas são Cássio Barbosa, fundador da Hedro, e Francesco Guidotto, Account Manager da Macnica DHW. Questionados sobre a crise ser causada unicamente pela pandemia, os entrevistados foram bastante cuidadosos em suas respostas.
Para Cássio, “essa escassez pode ser uma combinação de vários fatores. Primeiro aconteceu uma redução da produção de componentes pela China no começo de 2020 por causa da pandemia. Então, as empresas que geralmente consomem esses chips mudaram um pouco seus perfis de consumo. Alguns setores, que foram impactados negativamente pela pandemia, reduziram suas demandas e outros aumentaram”.
Ele concluiu sua análise mencionando o home office: “Isso causou uma mudança nos planos de produção de chips para atender setores que tiveram aumento de demanda. Os computadores e smartphones tiveram seus mercados aquecidos por causa da necessidade de viabilizar trabalhos remotos. Os eletrodomésticos também, pois passando mais tempo em casa, as pessoas passaram a desejar mais conforto e conveniência”.
Francesco concordou e acrescentou que as próprias fabricantes também passaram a operar com demanda reduzida: “A produção das fábricas foi suspensa ou reduzida para permitir o distanciamento seguro entre as pessoas. Os estoques de matéria-prima foram se exaurindo ao longo do ano sem reposição. Setores como o de informática e equipamentos para Telecom tiveram um aumento de demanda para permitir o home office e o ensino à distância (EAD). O setor de alimentação teve crescimento em função do auxílio emergencial”.
Os especialistas explicaram que existem vários fatores fomentando essa crise, mas que, sem dúvidas, a pandemia é a de maior impacto entre eles. Fica bastante nítido que a indústria se encontrou em um ponto de grande contraste. Algumas tecnologias tiveram redução drástica de sua produção, enquanto tecnologias destinadas ao home office cresceram fortemente.
Mas qual será o impacto dessa crise na indústria 4.0? Os projetos que envolvem esta tecnologia ficarão mais caros e inviáveis? Será que o Brasil corre algum risco nesse sentido? Cássio e Francesco concordam que as tecnologias dependentes de componentes muito específicos, como é o caso da Internet Industrial das Coisas (do original Industrial Internet of Things – IIoT), podem sim contar com um impacto direto no preço final e acrescentaram algumas observações.
Para Cássio, “os projetos relacionados à indústria 4.0, principalmente os que envolvem a digitalização de processos industriais, certamente sofrerão impactos. Os custos de produção dos hardwares que são utilizados para isso aumentaram consideravelmente, mas não ao ponto de inviabilizar as iniciativas, principalmente para as indústrias que tiveram seus mercados aquecidos”.
Francesco complementou: “O maior risco é que a falta de componentes generalizada adiará o lançamento de novos produtos, mas os projetos em desenvolvimento devem se manter na pauta das indústrias. O problema não é o custo porque não há o que comprar por falta de insumo”.
Com relação aos projetos internos de suas respectivas empresas, Cássio e Francesco se mostraram cautelosos, e acreditam que inevitavelmente algum tipo de impacto poderá ser sentido. Cássio faz uma análise da Hedro: “Os componentes eletrônicos que compõem os sensores da Hedro tiveram um aumento enorme de demanda, pois os sensores sem fio utilizam a tecnologia BLE, que também está presente em todos os smartphones, computadores e wearables. Por isso, os fabricantes de chips estão suando para atender essa demanda e os preços subiram consideravelmente. Esses impactos já eram evidentes no segundo semestre de 2020 e se agravaram agora em 2021”.
Ele concluiu: “Por causa dos sinais de escassez que surgiram logo no início da pandemia, a Hedro teve tempo para se planejar e adaptar os projetos de hardware para serem amigáveis à substituição dos componentes principais. Apesar de serem contraintuitivas, essas necessidades de revisão e adaptação de projetos costumam impactar positivamente os produtos, pois possibilitam melhorias em vários aspectos”. Francesco foi bastante direto ao tratar do impacto na demanda: “O maior impacto nos nossos clientes é sua saúde financeira. Resultados menores adiam investimentos”.
O impacto na indústria brasileira tende a ser tão intenso, se não mais profundo, quanto o notado em outros países. Como um território importador, é natural que o Brasil receba suas remessas com maiores atrasos, dada a demanda mundial. A transformação digital nacional pode ser impactada e tecnologias disruptivas como a IIoT, que demandam um hardware muito específico, poderão ser as primeiras a sentirem essa crise.
Cássio alegou que “o Brasil acaba sendo mais impactado negativamente a curto prazo pois somos importadores dessas tecnologias e o aumento da demanda, pra gente, significa aumento dos custos ou até mesmo a impossibilidade de produção”. Porém, ele alertou: “A longo prazo as mudanças de paradigma sobre a indústria 4.0 que estão sendo causadas pela pandemia são uma boa oportunidade para a indústria brasileira se modernizar, principalmente para os setores que tiveram aumento de rendimentos durante esse tempo e agora podem investir em melhorias”.
Francesco complementou: “Toda a cadeia produtiva que utiliza componentes eletrônicos como insumo será afetada no curto prazo, sem exceção. Planejamento junto à cadeia de fornecimento é a chave para diminuir o impacto da falta de componentes”.
As causas do “armagedom dos chips”
A pandemia do coronavírus exigiu que governos do mundo todo tomassem medidas protetivas para a população e isso demandou estratégias de isolamento como o lockdown e as quarentenas. Isso fez com que os profissionais migrassem para o modelo home office, o que naturalmente demandou um suporte tecnológico diferenciado para que as residências pudessem operar como escritórios personalizados.
O aumento da demanda foi tão grande que acabou fazendo com que as fabricantes se sobrecarregassem na produção de chips de processamento. A China, maior fabricante, teve um crescimento de 18% na demanda em 2020.
A indústria automobilística, por sua vez, teve de modificar a sua produção de chips para atuarem em outras frentes por conta da diminuição da venda de veículos no primeiro semestre de 2020. Ao final do mesmo ano, a produção de veículos voltou a crescer e isso fez com que as montadoras tivessem que retomar com força total a produção de microcontroladores para sistemas veiculares.
O Brasil como um país importador tende a ser diretamente impactado por essa crise, que acabará sendo sentida pelo consumidor final. Especialistas dizem que o problema deve durar pelo menos até 2022, afetando o preço pago pelo consumidor em diferentes tipos de produtos. Equipamentos como videogames, smartphones e tablets podem encarecer durante o ano de 2021, momento em que o auge da crise de produção deve acontecer.
Imagem: ABII
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