O conhecimento do comportamento de fenômenos ou de parâmetros de corte, tais como desgaste da ferramenta, aresta postiça de corte, calor gerado, velocidade de corte, avanço e profundidade de corte durante o processo de usinagem ajuda a explicá-los cientificamente. Para isso, é necessário estudar minuciosamente o processo de formação do cavaco[2].

Os aços inoxidáveis são ligas de ferro com, pelo menos, 12% de cromo, níquel e baixas quantidades de carbono. O aço inoxidável ABNT 304 é classificado como um aço inoxidável austenítico, devido à sua matriz austenítica com carbetos de cromo. Geralmente, são mais difíceis de usinar do que os aços comuns ao carbono e aços de baixa liga, devido, principalmente, à alta taxa de encruamento durante a usinagem. Também geram cavacos longos, que levam a um desgaste acelerado da ferramenta. O material da peça e a composição das ligas são os fatores mais significativos na caracterização do tipo de cavaco a ser produzido.

O objetivo deste trabalho é caracterizar alguns efeitos causados na usinagem do aço inox ABNT 304 austenítico, por meio da operação de torneamento, estabelecendo correlações entre os parâmetros de corte e suas consequências. Outro objetivo é fazer uma investigação experimental sobre os cavacos formados no torneamento cilíndrico externo do mesmo aço.

 

Materiais e métodos

Ao longo de todos os testes foram utilizadas duas barras cilíndricas de 38 mm de diâmetro e 120 mm de comprimento. As peças foram usinadas em um torno CNC Fagor, modelo TR-2, utilizando ferramentas de metal duro com revestimento de cermet, especificação TNMG 16 04 04L-K 4025, da Sandvik Coromant. O suporte usado tem especificação MT JNR 2525 - M16, também da Sandvik. Para cada velocidade de corte foram obtidas amostras de cavaco para análises posteriores.

Para as medidas de dureza do material, foi utilizado um durômetro Pantec de dureza Rockwell, com pré-carga de 10 kg e carga de 100 kg, aplicada durante 15 segundos com um penetrador de esfera 1/16”, de aço temperado.

Foram realizadas 10 medidas em diferentes pontos ao longo da seção transversal da barra e calculou-se a média dessas durezas. O material analisado tem dureza média de 79,5 HRB.

Para a medição da rugosidade das superfícies usinadas, foi utilizado um rugosímetro modelo TR 2000, cut-off de 0,8x5 mm, ranger (± 40 mm), filtro RC, padrão ISO. A medição da microdureza das seções, depois de usinadas, foi realizada com um microdurômetro Micro Vickers Hardness Tester, DHV-1000, penetrador de diamante (pirâmide base quadrada) com ângulo de 136º entre as faces e variação de carga de 10 gf a 1 kgf.

A tabela 1 apresenta a composição química do material usado na confecção do corpo de prova. As velocidades de corte foram variadas de um ensaio para outro e todas as outras condições foram mantidas constantes, como mostrado na tabela 2.

Os valores de velocidade de corte e de avanço foram escolhidos com base nas instruções do fabricante da ferramenta. Foram realizados quatro passes para coleta de cavacos, com parâmetros de usinagem conforme tabela 2. Todos os testes foram realizados sem a utilização de fluido de corte. Para cada condição de corte, foi feita a metalografia dos cavacos correspondentes e, das amostras, foram obtidas imagens digitalizadas por meio da microscopia eletrônica de varredura e por microanálise dispersiva de energia, no Laboratório de Microscopia Eletrônica do Departamento de Engenharia de Materiais (Demar/EEL/USP), usando o microscópio eletrônico de varredura (MEV) modelo VP 1450, fabricado pela Leo.

 

Resultados e discussão

As características resultantes do processo proposto podem ser observadas nas figuras 2 e 3. Os cavacos obtidos foram do tipo contínuo, como já era esperado para aços inoxidáveis austeníticos, devido à alta ductilidade do material e às velocidades de corte adotadas na usinagem (superiores a 60 m/min). A forma dos cavacos foi helicoidal, pois eles se dobraram lateralmente. Com isso, ele não se quebra com facilidade, provavelmente devido à pequena relação entre profundidade de corte e raio de ponta da ferramenta (ap/rot), conforme comprovado por Diniz et al[2].

A figura 1 foi obtida por microscópio eletrônico de varredura, um tipo de magnificação adequado para a visualização das camadas sobrepostas internamente pela parte lisa do cavaco, provocadas pelo próprio mecanismo de formação.

Figura 1 – Morfologia do cavaco gerado com vc = 175 m/min e f = 0,1 mm/rot.

Entre outras características observadas nessa figura está o aspecto morfológico de forma serrilhada nas bordas, resultante das sobreposições dinâmicas das porções recalcadas na ponta da ferramenta. A parte externa aparece de forma lisa como um “filme” de material, resultado do processo de corte da saída do cavaco. Ou seja, do atrito ou arraste do cavaco contra a superfície de saída da pastilha de corte.

A parte interna é formada por camadas sobrepostas e periódicas do processo de corte, morfologia inerente a materiais dúcteis. Como essas regiões recalcadas apresentam grandes deformações, podem ocorrer regiões com bandas de deslizamentos próximo às camadas separadas. Esse resultado se deve a movimentos rápidos e altamente dinâmicos das discordâncias que encruam o material local, em uma região na qual a energia se torna altamente saturante e não é mais absorvida. Assim, as porções são separadas, demonstrando realmente o mecanismo de formação de cavacos contínuos.

Outro aspecto observado na usinagem foi o comprimento dos cavacos, por meio de medição feita com um paquímetro. Nessa análise, ao se comparar diferentes velocidades de corte e mesmo avanço, verificou- -se que os comprimentos dos cavacos tiveram pequenas variações. Porém, com velocidade constante e avanço variável, de 0,1 para 0,15 mm/rot, houve redução no comprimento. Ferraresi[3] explica o ocorrido com as equações 1 (da força de corte) e 2, como segue:

Pc = Ks . S (1)

Onde: Ks = pressão específica de corte, isto é a força de corte para a unidade de área de secção de corte, e

S = área da seção de corte

A área da seção de corte é dada pelo produto da profundidade de corte ap com o avanço f.

S = ap . f (2)

Como a profundidade de corte foi mantida e o avanço foi aumentado, a área da seção de corte também aumentou, provocando, assim, redução da pressão específica de corte. O aumento do avanço também diminui o grau de recalque, fazendo com que a energia no rompimento do cavaco se torne menor e, como consequência, com possibilidade de se quebrar mais rapidamente.

Existe uma relação aproximada entre a tensão de cisalhamento na ruptura do material (tr), entre o grau de recalque e a pressão específica de corte, como relaciona a equação 3:

Ks =~ K . τr . Rc (3)

Onde: K = constante e

τr = tensão de cisalhamento limite, dada em um ensaio de torção (varia conforme o material).

Os valores de rugosidade foram analisados pela média, conforme figura 2. Para os dois primeiros passes de usinagem, foram mantidos constantes a velocidade de corte, em 60 m/ min, e o comportamento da rugosidade média, com aumento do avanço de 0,1 para 0,15 mm/ rot. No terceiro passe, eleva-se a velocidade de corte para 175 m/ min, com avanço de 0,1 mm/rot, ou seja, mesmo avanço do passe 1. O quarto passe obteve a mesma velocidade de corte do passe 3, porém, aumentando o avanço para 0,15 mm/rot. Em todos os passes foi utilizada a mesma profundidade de corte (2 mm). Os parâmetros de usinagem podem ser acompanhados na tabela 3.

Figura 2 – Variação da rugosidade média em função da velocidade de corte e avanço.

Portanto, quando se comparam os passes 1 e 2 evidenciam-se os aumentos do avanço e do valor da rugosidade. Conforme Risbood[7], o aumento da rugosidade está associado ao aumento do avanço, pois a distância entre picos e vales produzidos na superfície da peça também aumenta, elevando os valores de rugosidade. Além disso, o aumento do avanço eleva a área da seção de corte, fazendo com que a força necessária para usinar o material aumente. Com isso, as decorrentes vibrações do sistema prejudicam o acabamento da peça.

Para os resultados obtidos nos passes 3 e 4, nota-se aumento da rugosidade e do avanço. A variação da rugosidade média do passe 3 para o 4 foi de 0,036 mm, um valor menor do que o encontrado do passe 1 para o 2, no qual se obteve 0,661 mm de variação.

As figuras 3, 4, 5 e 6 relacionam os valores de microdureza. Por meio delas, nota-se que esses valores diminuem à medida que se distanciam da superfície, mas não se estabilizam à medida que a distância da extremidade aumenta. Possivelmente, isso deve ter ocorrido pela presença de inclusões, precipitados e tamanho de grão do material. Segundo Padilha e Guedes[5], essas inclusões ocupam posições intersticiais na rede cristalina da austenita.

O nitrogênio e o carbono, por exemplo, formam soluções sólidas intersticiais e causam notável endurecimento. Essas inclusões, também chamadas de nitretos, possuem estrutura hexagonal Cr2N. O fato de os valores de microdureza não terem se estabilizado a partir de certa medida impossibilitou identificar a dimensão da camada endurecida e fazer uma correlação com as diferentes condições de usinagem aplicadas. No entanto, foi feita uma análise entre a microdureza próxima à superfície usinada e a rugosidade.

Na região próxima da superfície usinada com velocidade de corte de 160 m/min e avanço de 0,15 mm/rot, foi atingida dureza média máxima da ordem de 292,3 HV, conforme figura 3.

Figura 3 – Rugosidade medida para vc = 160 m/min e f = 0,15 mm/rot.

Na região próxima da superfície usinada com velocidade de corte de 175 m/min e avanço de 0,1 mm/rot, foi obtida dureza média máxima da ordem de 286,6 HV (figura 4).

Figura 4 – Rugosidade medida para vc = 175 m/min e f = 0,1 mm/rot.

Na região próxima da superfície usinada com velocidade de corte de 175 m/min e avanço de 0,15 mm/rot, obteve-se dureza média máxima da ordem de 283,8 HV (figura 5).

Figura 5 – Rugosidade medida para vc = 175 m/min e f = 0,15 mm/rot.

Na figura 6, a rugosidade média foi correlacionada com a microdureza na região próxima da superfície da peça. Verifi cou-se que a variação dos valores de rugosidade aumentou a partir do aumento da velocidade de corte, em seguida diminuiu e depois manteve-se constante.

Figura 6 – Comparação de rugosidade e microdureza média medida próximo à superfície até o centro.

Com velocidade de corte de 160 m/min e avanço de 0,15 mm/rot, houve tendência de aumento da rugosidade média Ra e da microdureza. Logo, esses parâmetros não seriam adequados em uma situação na qual se deseja melhor acabamento e menor dureza superfi cial. Desta forma, a variável considerada de fundamental contribuição mecânica diante do encruamento na usinagem dos aços inoxidáveis austeníticos ABNT 304, e a mais importante a ser estudada, é o avanço.

Os resultados foram os mesmos encontrados por Paro et al[6] durante operações de fresamento. Bouzid Saï et al[1] também confirmam essa hipótese e o aumento do contato peça-ferramenta e da espessura do cavaco, além dos efeitos térmicos que o avanço provoca no aumento dos valores de microdureza e, consequentemente, da rugosidade.

 

Conclusão

O tipo de cavaco obtido neste trabalho foi o contínuo, devido à ductilidade do aço inoxidável ABNT 304 e à velocidade de corte utilizada. Foram evidenciados cavacos de geometria helicoidal, de acordo com a pequena relação entre a profundidade de corte e o raio da ferramenta. O comprimento dos cavacos foi influenciado pelo avanço, que, por sua vez, afetou a pressão específica de corte e o grau de recalque.

O principal responsável pelo aumento da rugosidade no início do processo caracterizou-se pelo avanço. Porém, a sua infl uência diminui com o aumento da velocidade de corte. Os valores de microdureza obtidos na seção transversal da peça após a usinagem reduziram-se a partir da superfície até o centro. No entanto, não estabilizaram a seguir, devido à presença de inclusões, precipitados e tamanho de grão no material.

O avanço foi a variável mais relevante no aumento da microdureza próximo à superfície nos dois primeiros passes de usinagem. O aumento da velocidade de corte no terceiro e no quarto passe diminuiu a relevância do avanço na variação da microdureza na superfície. O comportamento da microdureza e da rugosidade foram semelhantes em todos os parâmetros de usinagem.

O aumento do avanço prejudica o acabamento superficial e a diminuição da microdureza, mas favorece o comprimento do cavaco adequado.

 

Referências

1] Bouzid, S. W.; Ben Salah, N.; Lebrun, J. L.: Infl uence of machining by fi nishing milling on surface characteristics. International Journal of Machine Tools & Manufacture, v. 41, p. 443-450, 2001.

2] Diniz, A. E.; Marcondes, F. C.; Coppini, N. L.: Tecnologia da usinagem dos metais. Ed. Artliber, São Paulo, 2000.

3] Ferraresi, D.: Fundamentos da usinagem dos metais. Ed. Edgard Blucher, São Paulo, 1977.

4] Lourenço, C. J.: A usinabilidade do aço inoxidável austenítico ABNT 304. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Uberlândia, 110 p., 1996.

5] Padilha, A. F.; Guedes, L.C.: Aços inoxidáveis austeníticos. Ed. Hemus, 1a ed., 1994.

6] Paro, J.; Hänninen, H.; Kauppinen, V.: Tool wear and machinability of hiped p/m and conventional cast duplex stainless steels. Wear, v. 249, p. 279-284, 2001.

7] Risbood, K. A.: Prediction of surface roughness and dimension deviation by measuring cutting forces and vibrations in turning process. Journal Materials Processing Technology, 2003.


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